quinta-feira, 3 de setembro de 2015

A opressão silenciosa

Todos nós já estivemos nessa posição pelo menos uma vez na vida, confie em mim. Estamos lá de boa, conversando, brincando, daí soltamos uma piadinha besta, inconsequente. Alguma piadinha de português, de gordo, de loira, de viado, de preto, de crente. Você não é nenhum psicopata, e obviamente nunca pretendeu ofender toda uma nacionalidade, uma característica corporal ou uma religião. Era só um comentário besta e imaturo, mas alguém ficou ofendido. Mas isso sem dúvida é frescura, certo? É só uma piada, meu Deus. Você não advoga que mulheres, negros, homossexuais, obesos ou evangélicos devam ser varridos do planeta, colocados em campos de concentração ou algo assim. Uma piada boba não te faz racista, machista, homofóbico, gordofóbico ou cristofóbico (o que quer que seja isso), né?

Bom...

Sim e não.

É preciso entender que toda opressão tem dois fronts: o visível e o invisível. O front visível é o do ódio mesclado com o medo. É quando você acha que os negros deviam ser mandados de volta pra África para resolver a criminalidade do Brasil, que lugar de mulher é calada na cozinha, que qualquer sexualidade que não a hétero é uma doença a ser curada, que obesos são comilões desleixados ou que toda pessoa evangélica é preconceituosa e cheia de regras estranhas.

A opressão visível é fácil de combater. Coloque-se uma cota de negros, mulheres e genderqueers em qualquer ambiente para que os números sejam igualados, criminalize-se os comentários ofensivos contra uma minoria oprimida, mantenha silêncio sobre suas opiniões de gênero, sexualidade, raça e religião se estiver na frente de pessoas que se ofendam com elas e tudo fica ok, certo?

Rá, certo.

Vamos começar com essa última parte. Um poeta já disse que não se fala mal de alguém na frente da pessoa, porque é falta de educação. Ria o quanto quiser, mas isso é uma das grandes regras silenciosas da nossa sociedade: “não tem problema falar mal de alguém se a pessoa não está por perto, o que os olhos não veem, o coração não sente”. É isso o que faz do bullying algo tão humilhante: quando as pessoas falam na nossa cara algo que sabem que nos machuca, é um sinal de que não ligam para nossos sentimentos a respeito daquilo.

Sabendo disso, pensem no que um homossexual sente quando está na plateia de um show de humor e um cara começa a fazer piadas de gay. Temos aí três possíveis formas de pensamento que podem levar o humorista a fazer tais piadas:

1) O humorista não liga para o que os gays sentem quando são estereotipados com características negativas (o que não costuma ser o caso, a maioria das pessoas não é tão cruel);

2) O humorista está tentando fazer os homossexuais se sentirem tão ridículos que eles deixem de ser homossexuais (caras, esse tipo de humor não funciona com características que são suas de nascimento, tipo ser gay, ser negro ou ser mulher);

3) O humorista simplesmente não computa que gays “existam de verdade”, a ponto de fazer parte de sua plateia. Ou que gays se interesse por seu número.

A primeira dessas possibilidades se chama bullying, e creio que a sociedade como um todo decidiu que isso é uma coisa ruim. Sou uma incurável otimista, que acredita que a maioria dos seres humanos aprendeu isso ainda na escola. Falar coisas só porque você sabe que isso vai fazer o outro chorar é feio. Muito feio.

A segunda possibilidade é ligada ao que as pessoas chamam de “poder transformador do humor”. Temos uma crença implícita de que, caso façamos uma pessoa se sentir ridícula no papel que ela está fazendo, a pessoa vai se conformar ao “certo”. Se achamos alguém chorão, fazemos piadas com a cara da pessoa e ela vai passar a segurar o choro para não ser ridicularizada. Se achamos alguém hipócrita, zoamos essa hipocrisia. Nesse caso, o humor é uma forma mais leve (mas nem por isso menos contundente) de repreensão. Isso é bem legal quando repreendemos alguém poderoso que está abusando do poder, ou quando repreendemos a humanidade no geral, e todas as nossas mazelas. O negócio é que levamos essa ridicularização longe demais.

Ridicularizar a avareza é legal, porque quase todos nós (otimismo, sempre o otimismo) somos um pouco avarentos e isso é algo que podemos mudar com nossas escolhas. Mas e quando ridicularizamos o cabelo de alguém, a pele, a orientação sexual, a identidade de gênero, a nacionalidade... Coisas que alguém não pode mudar? Ou que terão que fazer sacrifícios cosméticos custosos para mudar, sendo que, no fim, que diferença faz no grande esquema das coisas? Isso deixa de ser engraçado, para ser uma pressão injusta. É um jogo de poder. Se uma pessoa faz uma piada com o cabelo crespo de alguém e todos riem, todos estão validando a opinião do humorista. A pessoa de cabelo crespo não vai ver isso como uma piada, mas como uma repreensão social disfarçada. Se ela não concorda que cabelo crespo é inadequado, ela vai ficar ofendida. Se ela implicitamente concorda com isso (ou é levada a concordar, depois de ver isso em todos os lugares), ela vai ficar infeliz consigo mesma, podendo ficar deprimida se não houver nada que ela possa fazer para se conformar às normas sociais.

Mas nada disso é novidade. Você já leu em milhares de lugares sobre esse lado dark do humor. Nem é sobre isso que quero me demorar. É sobre a terceira possibilidade que eu disse ali em cima. Essa é que pega a todos nós pelo pé, porque ela não implica que você odeie alguma minoria e queira machucá-la, ou que você a ache inadequada e queira conformá-la a sua visão de mundo. Você pode ser a pessoa mais legal e aberta. Você simplesmente “se esquece” de que aquelas pessoas estão ali.

E a indiferença, meus amores, a indiferença é uma forma de crueldade, já dizia outro poeta.

Há uns dez anos mais ou menos, eu, adolescente e idiota estava entre parentes mais ou menos distantes e fiz um comentário mais idiota ainda sobre alguém estar com “saia de crente’. Não era nem uma piada, era uma dessas comparações bobas. Daí, minha mãe pacientemente me chamou num canto e me disse o óbvio: “Adriana, tem gente na família que é evangélico, eles não gostam disso”. É óbvio, mas é a hora que algumas conexões se fazem dentro de você: “espera, essas pessoas EXISTEM”. Não são personagens de uma piada, gente de papelão, pessoas que só existem na casa do vizinho. São pessoas que podem estar em qualquer lugar, em qualquer meio. Eu nunca estive preocupada em me vigiar para não falar besteira de “crente” porque, graças àquela máxima de que “o que os olhos não veem o coração não sente” – e eu implicitamente acreditava que ninguém nas minhas relações fosse evangélico –, então estava liberado não ser “educado”. O que é ridículo, porque evangélicos estão longe de ser uma minoria, mas isso é preconceito para vocês. Não é sempre algo que pensamos conscientemente, porque uma vez que colocamos esse tipo de preconceito em palavras, vemos o quanto é ridículo. Ele só funciona quando é invisível.

Desde então, fico feliz de dizer que dei uma bronca considerável no meu cérebro, e depois de muito carinho e cuidado, deixei pra trás esses estereótipos bobos de evangélicos. Ajuda abrir suas relações e conhecer o outro mais a fundo. Mas sei muito bem que deve ter um poço de preconceitos debaixo desse meu rostinho sorridente, esperando a hora de escaparem e me envergonharem, porque, como eu disse, preconceitos funcionam enquanto são invisíveis.

Vou dar a vocês um exemplo ainda mais insidioso de opressão invisível, benevolente e bem intencionada, mas opressão mesmo assim. Fiquem felizes de ela parecer se encaminhar para um final feliz.

Quem já conversou comigo por tempo o suficiente sabe que adoro o Cracked.com. Eles conseguem ser informativos, bem-humorados e, às vezes, surpreendentemente democráticos, cuidadosos e imparciais para um site de humor, não de jornalismo “sério”.

Mesmo assim, um dia reclamei com um amigo que o Cracked era um site que escrevia de homem para homem, e que isso às vezes irritava. Se eu tivesse dito isso aos redatores na época, eles iriam obviamente negar. “Como assim, o Cracked é para todos!” Mas o fenômeno era claro e simples: os escritores sempre escreviam com a crença implícita de que estavam falando para outros homens. Você vê isso quando o autor se refere ao leitor como “você” e logo depois vem com um “isso causa a ereção mais bizarra que você pode imaginar”. Ou uma piadinha de como tal coisa é igual “ter que explicar por que você brochou”. Eu sou uma pessoa tão imaginativa como qualquer outra e acho que posso tentar entender esses sentimentos intrinsecamente masculinos (porque estão ligados a um pênis que eu não tenho), mas... fica irritante quando nunca tem NENHUMA comparação intrinsecamente feminina. Nenhum escritor (exceto as moças do site, às vezes) fazia piadas de TPM, por exemplo.

Isso cria nas leitoras uma sensação de que elas não fazem parte da conversa. É aquela opressão invisível e invisibilizadora, onde sutilmente dizemos a alguém que a pessoa não faz parte da conversa. Não é feita por mal, mas simplesmente por negligência. Que é um tipo de mal, mas enfim.

O final feliz que se insinua no horizonte é que o Cracked ou leu minhas reclamações nessas conversas particulares (eles têm bons espiões, pelo que ouvi), ou ouviu as reclamações de outras moças, e começou a mudar. É uma mudança sutil, gradual, mas satisfatória. De repente, do lado de uma piada de pinto, tem um pedido de licença às garotas, ou uma piada equivalente para nosso gênero. Nas fotos de casais genéricos, aparecem casais gays. Sempre que podem, colocam fotos genéricas de gente de todas as cores e idades. Aos pouquinhos e sutilmente, os escritores parecem nos dizer que sim, eles perceberam que não tem mais só homem branco lendo. Tenho percebido mais nomes de garotas entre os autores dos artigos. Ainda falta muito, mas é animador. Porque veja só, uma pesquisa de mercado pode até dizer que seu público é majoritariamente masculino, branco e hétero, mas já pensaram que isso pode ter menos a ver com os outros não gostarem do conteúdo e mais a ver com como são tratados? Ao invés de se afundar ainda mais em seu nicho, produzindo ainda mais conteúdo pra homens brancos héteros, o Cracked resolveu se abrir.

E é nessa hora que tanta gente peca. Por não odiar ou desprezar um grupo, as pessoas não querem acreditar que podem estar sendo excludentes. Mas a gente exclui. E sabe o pior? Só o excluído consegue perceber isso. Por isso que é tão importante darmos valor às críticas que recebemos por sermos excludentes ou ofensivos. Sim, pode ser frescura até certo ponto, mas não custa checar se não tem fogo no meio de toda essa fumaça. Geralmente tem.