quinta-feira, 3 de setembro de 2015

A opressão silenciosa

Todos nós já estivemos nessa posição pelo menos uma vez na vida, confie em mim. Estamos lá de boa, conversando, brincando, daí soltamos uma piadinha besta, inconsequente. Alguma piadinha de português, de gordo, de loira, de viado, de preto, de crente. Você não é nenhum psicopata, e obviamente nunca pretendeu ofender toda uma nacionalidade, uma característica corporal ou uma religião. Era só um comentário besta e imaturo, mas alguém ficou ofendido. Mas isso sem dúvida é frescura, certo? É só uma piada, meu Deus. Você não advoga que mulheres, negros, homossexuais, obesos ou evangélicos devam ser varridos do planeta, colocados em campos de concentração ou algo assim. Uma piada boba não te faz racista, machista, homofóbico, gordofóbico ou cristofóbico (o que quer que seja isso), né?

Bom...

Sim e não.

É preciso entender que toda opressão tem dois fronts: o visível e o invisível. O front visível é o do ódio mesclado com o medo. É quando você acha que os negros deviam ser mandados de volta pra África para resolver a criminalidade do Brasil, que lugar de mulher é calada na cozinha, que qualquer sexualidade que não a hétero é uma doença a ser curada, que obesos são comilões desleixados ou que toda pessoa evangélica é preconceituosa e cheia de regras estranhas.

A opressão visível é fácil de combater. Coloque-se uma cota de negros, mulheres e genderqueers em qualquer ambiente para que os números sejam igualados, criminalize-se os comentários ofensivos contra uma minoria oprimida, mantenha silêncio sobre suas opiniões de gênero, sexualidade, raça e religião se estiver na frente de pessoas que se ofendam com elas e tudo fica ok, certo?

Rá, certo.

Vamos começar com essa última parte. Um poeta já disse que não se fala mal de alguém na frente da pessoa, porque é falta de educação. Ria o quanto quiser, mas isso é uma das grandes regras silenciosas da nossa sociedade: “não tem problema falar mal de alguém se a pessoa não está por perto, o que os olhos não veem, o coração não sente”. É isso o que faz do bullying algo tão humilhante: quando as pessoas falam na nossa cara algo que sabem que nos machuca, é um sinal de que não ligam para nossos sentimentos a respeito daquilo.

Sabendo disso, pensem no que um homossexual sente quando está na plateia de um show de humor e um cara começa a fazer piadas de gay. Temos aí três possíveis formas de pensamento que podem levar o humorista a fazer tais piadas:

1) O humorista não liga para o que os gays sentem quando são estereotipados com características negativas (o que não costuma ser o caso, a maioria das pessoas não é tão cruel);

2) O humorista está tentando fazer os homossexuais se sentirem tão ridículos que eles deixem de ser homossexuais (caras, esse tipo de humor não funciona com características que são suas de nascimento, tipo ser gay, ser negro ou ser mulher);

3) O humorista simplesmente não computa que gays “existam de verdade”, a ponto de fazer parte de sua plateia. Ou que gays se interesse por seu número.

A primeira dessas possibilidades se chama bullying, e creio que a sociedade como um todo decidiu que isso é uma coisa ruim. Sou uma incurável otimista, que acredita que a maioria dos seres humanos aprendeu isso ainda na escola. Falar coisas só porque você sabe que isso vai fazer o outro chorar é feio. Muito feio.

A segunda possibilidade é ligada ao que as pessoas chamam de “poder transformador do humor”. Temos uma crença implícita de que, caso façamos uma pessoa se sentir ridícula no papel que ela está fazendo, a pessoa vai se conformar ao “certo”. Se achamos alguém chorão, fazemos piadas com a cara da pessoa e ela vai passar a segurar o choro para não ser ridicularizada. Se achamos alguém hipócrita, zoamos essa hipocrisia. Nesse caso, o humor é uma forma mais leve (mas nem por isso menos contundente) de repreensão. Isso é bem legal quando repreendemos alguém poderoso que está abusando do poder, ou quando repreendemos a humanidade no geral, e todas as nossas mazelas. O negócio é que levamos essa ridicularização longe demais.

Ridicularizar a avareza é legal, porque quase todos nós (otimismo, sempre o otimismo) somos um pouco avarentos e isso é algo que podemos mudar com nossas escolhas. Mas e quando ridicularizamos o cabelo de alguém, a pele, a orientação sexual, a identidade de gênero, a nacionalidade... Coisas que alguém não pode mudar? Ou que terão que fazer sacrifícios cosméticos custosos para mudar, sendo que, no fim, que diferença faz no grande esquema das coisas? Isso deixa de ser engraçado, para ser uma pressão injusta. É um jogo de poder. Se uma pessoa faz uma piada com o cabelo crespo de alguém e todos riem, todos estão validando a opinião do humorista. A pessoa de cabelo crespo não vai ver isso como uma piada, mas como uma repreensão social disfarçada. Se ela não concorda que cabelo crespo é inadequado, ela vai ficar ofendida. Se ela implicitamente concorda com isso (ou é levada a concordar, depois de ver isso em todos os lugares), ela vai ficar infeliz consigo mesma, podendo ficar deprimida se não houver nada que ela possa fazer para se conformar às normas sociais.

Mas nada disso é novidade. Você já leu em milhares de lugares sobre esse lado dark do humor. Nem é sobre isso que quero me demorar. É sobre a terceira possibilidade que eu disse ali em cima. Essa é que pega a todos nós pelo pé, porque ela não implica que você odeie alguma minoria e queira machucá-la, ou que você a ache inadequada e queira conformá-la a sua visão de mundo. Você pode ser a pessoa mais legal e aberta. Você simplesmente “se esquece” de que aquelas pessoas estão ali.

E a indiferença, meus amores, a indiferença é uma forma de crueldade, já dizia outro poeta.

Há uns dez anos mais ou menos, eu, adolescente e idiota estava entre parentes mais ou menos distantes e fiz um comentário mais idiota ainda sobre alguém estar com “saia de crente’. Não era nem uma piada, era uma dessas comparações bobas. Daí, minha mãe pacientemente me chamou num canto e me disse o óbvio: “Adriana, tem gente na família que é evangélico, eles não gostam disso”. É óbvio, mas é a hora que algumas conexões se fazem dentro de você: “espera, essas pessoas EXISTEM”. Não são personagens de uma piada, gente de papelão, pessoas que só existem na casa do vizinho. São pessoas que podem estar em qualquer lugar, em qualquer meio. Eu nunca estive preocupada em me vigiar para não falar besteira de “crente” porque, graças àquela máxima de que “o que os olhos não veem o coração não sente” – e eu implicitamente acreditava que ninguém nas minhas relações fosse evangélico –, então estava liberado não ser “educado”. O que é ridículo, porque evangélicos estão longe de ser uma minoria, mas isso é preconceito para vocês. Não é sempre algo que pensamos conscientemente, porque uma vez que colocamos esse tipo de preconceito em palavras, vemos o quanto é ridículo. Ele só funciona quando é invisível.

Desde então, fico feliz de dizer que dei uma bronca considerável no meu cérebro, e depois de muito carinho e cuidado, deixei pra trás esses estereótipos bobos de evangélicos. Ajuda abrir suas relações e conhecer o outro mais a fundo. Mas sei muito bem que deve ter um poço de preconceitos debaixo desse meu rostinho sorridente, esperando a hora de escaparem e me envergonharem, porque, como eu disse, preconceitos funcionam enquanto são invisíveis.

Vou dar a vocês um exemplo ainda mais insidioso de opressão invisível, benevolente e bem intencionada, mas opressão mesmo assim. Fiquem felizes de ela parecer se encaminhar para um final feliz.

Quem já conversou comigo por tempo o suficiente sabe que adoro o Cracked.com. Eles conseguem ser informativos, bem-humorados e, às vezes, surpreendentemente democráticos, cuidadosos e imparciais para um site de humor, não de jornalismo “sério”.

Mesmo assim, um dia reclamei com um amigo que o Cracked era um site que escrevia de homem para homem, e que isso às vezes irritava. Se eu tivesse dito isso aos redatores na época, eles iriam obviamente negar. “Como assim, o Cracked é para todos!” Mas o fenômeno era claro e simples: os escritores sempre escreviam com a crença implícita de que estavam falando para outros homens. Você vê isso quando o autor se refere ao leitor como “você” e logo depois vem com um “isso causa a ereção mais bizarra que você pode imaginar”. Ou uma piadinha de como tal coisa é igual “ter que explicar por que você brochou”. Eu sou uma pessoa tão imaginativa como qualquer outra e acho que posso tentar entender esses sentimentos intrinsecamente masculinos (porque estão ligados a um pênis que eu não tenho), mas... fica irritante quando nunca tem NENHUMA comparação intrinsecamente feminina. Nenhum escritor (exceto as moças do site, às vezes) fazia piadas de TPM, por exemplo.

Isso cria nas leitoras uma sensação de que elas não fazem parte da conversa. É aquela opressão invisível e invisibilizadora, onde sutilmente dizemos a alguém que a pessoa não faz parte da conversa. Não é feita por mal, mas simplesmente por negligência. Que é um tipo de mal, mas enfim.

O final feliz que se insinua no horizonte é que o Cracked ou leu minhas reclamações nessas conversas particulares (eles têm bons espiões, pelo que ouvi), ou ouviu as reclamações de outras moças, e começou a mudar. É uma mudança sutil, gradual, mas satisfatória. De repente, do lado de uma piada de pinto, tem um pedido de licença às garotas, ou uma piada equivalente para nosso gênero. Nas fotos de casais genéricos, aparecem casais gays. Sempre que podem, colocam fotos genéricas de gente de todas as cores e idades. Aos pouquinhos e sutilmente, os escritores parecem nos dizer que sim, eles perceberam que não tem mais só homem branco lendo. Tenho percebido mais nomes de garotas entre os autores dos artigos. Ainda falta muito, mas é animador. Porque veja só, uma pesquisa de mercado pode até dizer que seu público é majoritariamente masculino, branco e hétero, mas já pensaram que isso pode ter menos a ver com os outros não gostarem do conteúdo e mais a ver com como são tratados? Ao invés de se afundar ainda mais em seu nicho, produzindo ainda mais conteúdo pra homens brancos héteros, o Cracked resolveu se abrir.

E é nessa hora que tanta gente peca. Por não odiar ou desprezar um grupo, as pessoas não querem acreditar que podem estar sendo excludentes. Mas a gente exclui. E sabe o pior? Só o excluído consegue perceber isso. Por isso que é tão importante darmos valor às críticas que recebemos por sermos excludentes ou ofensivos. Sim, pode ser frescura até certo ponto, mas não custa checar se não tem fogo no meio de toda essa fumaça. Geralmente tem.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Desinformados? Desinformados somos nós!

Eu tenho vários alunos no meu facebook e, nessas eleições, decidi que mal iria postar coisas lá para não ser acusada de fazer panfletagem com eles. No Twitter, relaxei um pouco zoando com o Aécio porque Aécio (e seu sucessor, Anastasia) tem uma longa e desgastante história com os professores de Minas e foi catártico ver pessoas de outros Estados de repente estarem falando sobre o homem que quase não é mencionado na amordaçada imprensa mineira.

Problemas pessoais com o candidato à parte, para mim, a questão sempre foi muito simples: mesmo que fosse outro do PSDB lá em cima, eu não votaria. A razão é: por mais que o PT tenha tido uma gestão deficiente em muitos sentidos (só vou deixar duas palavras cheias de mal agouro: crise imobiliária), dos partidos que entraram no pleito no segundo turno, é o mais próximo da minha ideologia. Eu não acho que o crescimento econômico vai gerar o bem-estar social, eu acho que cuidar do bem-estar social é que traz benefícios para a economia. (Até porque, economia é necessária e importante, já que o Governo precisa de dindim pra trabalhar.) No PSDB (o partido, não os eleitores), eu sinto enrustida aquela retórica de que "qualquer um pode ser rico, é só trabalhar - se você é pobre, ou é burro ou é preguiçoso", retórica que ganhou o nome novo e bonitinho de "meritocracia", e que não concordo.

Primeiro, por uma razão muito simples. Eu trabalho na assistência social espírita desde que me entendo por gente. Comecei a participar dos trabalhos em meados de 2004 e estou aqui até então, mas meu primeiro contato PRA VALER com o trabalho social foi em 2000. Pode-se dizer que estou nessa lida desde o início do Governo Lula. Os atingidos por esse trabalho são moradores de favelas e/ou regiões bem pobres.

Pois bem. Quando entrei pra assistência social, eram umas 20 a 30 famílias que se cadastravam pra receber cesta básica a cada semestre. Quando se conversava sobre política, essas pessoas repetiam palavra por palavra discursos de seus patrões ou de repórteres da TV. Minha avó vivia dizendo que "esse Lula não presta", Dra. Fulana disse pra lá, Dra. Fulana aconteceu pra cá. O Governo FHC tinha mesmo um programa semelhante ao Bolsa Família. E eles distribuíam cesta básica. Quer maior esmola que cesta básica?

Não é à toa que a mídia conseguiu eleger o Collor. A postura que se tinha era a de que os moradores de regiões pobres e pouco desenvolvidas eram pobres coitados que tinham que esperar em posição passiva o que os esclarecidos tinham a dar a eles. Que as "pessoas inteligentes" sabiam o que era melhor para eles.

Daí veio o Governo Lula e as bolsas. Agora, ao invés de receber o peixe (isso é, ganhar cesta básica pronta), o povo aprendeu a pescar (isso é, ganhar um dinheirinho equivalente a uma cesta básica para a pessoa comprar aquilo que acha melhor). Ao invés de dar benefícios às pessoas necessitadas, sem confiar que elas seriam capazes de comprar o que precisavam, o Governo deu a elas um voto de confiança. Deu o dinheiro e deixou que elas o gerenciassem. E vejam se que coisa curiosa: hoje, 10 anos depois de eu entrar para a assistência social, apenas 3 ou 4 famílias se cadastram lá por semestre, mas elas estão ali claramente por outras razões que não só a cesta básica. Elas compram no bazar beneficente, ao invés de só receber as doações. A casa espírita que frequento passou de "situada no meio da favela" a "situada em uma rua de casas simples". Todas as casas da rua de lá agora têm carro e quase todas foram reformadas e pintadas nos últimos anos.

Mas sabe o que é mais legal? Primeiro, essas pessoas têm agora opinião própria. Sim, muitas ainda respeitam muito, a ponto de imitar, falas de pessoas que elas percebem como "mais instruídas". Mas uma parte importante dessas pessoas percebeu que ela não precisa só votar no interesse de seus patrões, ou de gente de outro Estado. Que as pessoas as tratam como se fossem parasitas preguiçosos só esperando o bolsa família pingar, quando, na verdade, eles trabalham como burros e só querem consumir como todos os outros para terem sua dignidade. E isso dói. Dilma não ganhou por dar dinheiro a essas pessoas, mas porque elas obviamente não querem votar ao lado de quem as trata como lixo sem saber como elas realmente são.

Esse pessoal passa mais tempo na escola por conta do bolsa-escola (ah, e a primeira geração a pegar bolsa-escola no ensino médio já tem filhos, eu conheço vários). Esse pessoal tem grana pra entrar na internet e se informar graças às bolsas que deixam sobrar um trocado. Essas famílias têm agora membros que entraram na faculdade graças ao ENEM e ao PROUNI e trazem aquela cultura universitária pra casa delas.

Os pobres são burros? São desinformados? NÃO! Desinformados somos nós que achamos isso! Nós que cultivamos uma imagem de "pobre" de 15 anos atrás! A população que vive em regiões mais pobres nunca foi tão bem informada!

(Inclusive, quem fica falando de "pobre burro que vota no PT por causa do bolsa-esmola" deveria saber que, passando na favela, ouvi gente que ganha bolsa-família falando que ia votar no PSDB. Durma com um barulho desse.)

Não acho que a vitória da Dilma foi uma vitória de uma população preguiçosa que quer garantir seus trocados sem esforço. Por tudo o que vi nos últimos dez anos, não pelo jornal, mas diante dos meus olhos, essa foi uma vitória da politização de quem era só espectador.

Veja os lugares onde a Dilma ganhou: o Nordeste (que antes era conhecido só por "seca e miséria", os "coitadinhos do Brasil"), o interior de Minas ("só caipira encostado, porque não vão logo pras cidades ter uma vida melhor?") e outros lugares que estavam sempre à margem da política, sempre confiando na "gente instruída", sempre alimentados com os restos do "Brasil desenvolvido". Quando o Lula entrou, ele fez mais do que simplesmente dar comida pra esse povo. Isso, quem fazia eram os governos anteriores. Ele mostrou pra esse pessoal que eles tinham voto. Eles tinha vez. Tinham importância e dignidade. E o mais importante: o voto deles pesa. Eles podem votar pra si e ganhar.

O verdadeiro gigante que acordou no Brasil foram os marginalizados políticos, pessoal. Um gigante que não vai se satisfazer mais com migalhas de nenhum partido. O PT ganhou essa eleição pela gratidão desse gigante, mas se não der atenção a ele e não souber articular os interesses dele e os outros que sempre estiveram aí, não vai ter fôlego pra continuar.

É engraçado, não é, que o bolsa-família sempre tenha sido criticado por "dar o peixe, mas não ensinar a pescar", quando a verdade é que a esmola de cesta básica antes que era dar o peixe. O bolsa-família foi dar a vara, e agora o povo tá pescando que é uma maravilha. Gente que antes dava bença pro sinhô dotô hoje olha nos olhos do médico e questiona o diagnóstico dele, porque a internet fala tal coisa. Essas pessoas não podem mais ser empurradas pra debaixo do tapete. Elas querem seu pedaço do bolo-Brasil, e isso vai, naturalmente, diminuir os pedaços de quem antes ganhava muito bolo.

Eu amo esse novo Brasil, mesmo que isso signifique que, em 2018, ganhe um presidente que eu não concorde. Esse é um Brasil que está saindo do cabresto. Pra mim, a única coisa que falta pra gente definitivamente entrar no rumo certo é moralizar essa imprensa que publica calúnia e difamação sob o véu de "liberdade de expressão". Porque não tem outro nome para muito do que a Veja tem publicado ao longo desses anos. A Globo pode ser velhaca, mas ela tem seus limites. Ela tem o mínimo de responsabilidade de não ser alarmista, nem incitar o ódio (mesmo que eu tenha uma birra pessoa de como ela nunca cobre manifestações e greves entrevistando os manifestantes, mas as pessoas que estão paradas no trânsito, dando sutilmente a entender que os manifestantes são um bando de gente à toa impedindo gente de bem de trabalhar por bobagem).

No mais, ainda tem muito o que fazer pelo Brasil, e, por mim, não precisa ser o PT que vai fazer. Mas o importante é que o governo do PT vai deixar um legado maravilhoso de empoderamento político de pessoas e já está passando da hora de a oposição reconhecer que o maior colégio eleitoral agora é o Brasil, não é mais o eixo Sul-Sudeste (particularmente São Paulo). Agora, qualquer grupo de pessoas de qualquer parte do país pode fazer parte dos 3 milhões que vão te eleger.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

A arte de fazer gráficos

As eleições estão chegando, todo mundo falando de pesquisa pra cá, pesquisa pra lá, daí resolvi dividir minha vasta experiência em manipular gráficos pra ficarem bonitos em apresentações de slide sem precisar cometer fraude (ei, gráficos são menos ferramentas matemáticas e mais estratégias de marketing - quem diz que nunca embelezou um gráfico está mentindo).

Apesar de eu sempre ter manipulado os gráficos para deixá-los mais simétricos e agradar meu TOC, sei muito bem como essas técnicas podem ser usadas para o lado negro da Força. Fique esperto quando perceber essas técnicas pipocando por aí.

1. Manipulação por escala

Essa é a manipulação mais simples de se fazer e funciona por sermos criaturas altamente impressionáveis pela via visual. Vamos supor que você tenha feito uma pesquisa demonstrando o aumento das vendas de determinado produto de uma empresa ao longo de vários meses. É hora de mostrar os resultados. Na hora da reunião com o chefe que o contratou para esse serviço, você mostra esse gráfico:


Todo mundo fica feliz e te dá tapinhas nas costas. As vendas não param de crescer, e crescem bem rápido! Pouco tempo depois, você é demitido e vai trabalhar para a empresa concorrente. Daí, você apresenta sua pesquisa para eles:


É, o crescimento ainda existe, mas parece que eles andam meio estagnados... Depois de um bom começo, as vendas estão crescendo, mas a passo de lesma. O que é ótimo para a concorrência.

Os dois gráficos foram feitos com os mesmos dados, se ainda não deu para desconfiar. A única diferença é que a escala de cima é bem maior que a de baixo. Esse é um truque muito simples. Se você quer enfatizar um crescimento (ou uma queda), aumente bem a escala. Se quer fazer parecer com uma situação mais estável, diminua bem a escala. Outro exemplo:


Dessa vez, ao invés de simplesmente achatar um pouco a escala, eu modifiquei os valores iniciais e finais do eixo y. No gráfico à esquerda, os valores começam em 100 e vão até 150. No gráfico ao lado, vão de 0 a 300. Desnecessário dizer que são os mesmos dados. (A grade ajuda vocês a verem o que manipulei. Reparem como ela geralmente está ausente em gráficos gerados para o grande público.)

Esse tipo de manipulação, em épocas de eleição, são um jeito sutil de fazer o crescimento ou queda de um candidato parecer maior do que do outro. Você não precisa inventar dados, só escolher a escala correta. Fiquem sempre de olho quando estatísticas de candidatos forem apresentadas separadamente. O gráfico mais confiável nesses casos é os que mostram todos juntos na mesma escala, apesar de, nesse caso termos o problema de...

2. Manipulação por amostragem

Essa é uma manipulação de dados ainda mais maldosa, porque não pode ser verificada com uma rápida olhada no eixo y, como a manipulação acima. No mundo acadêmico, se você for pego fazendo isso, já era.

A questão é, você sempre pode conseguir qualquer resultado que quiser em uma pesquisa estatística se tomar os dados no lugar e momento corretos. É essa a razão por haverem tantos institutos de pesquisa rivais. Cada um tem um método de determinar quem será entrevistado e de que maneira, o que muda bastante os resultados finais.

Uma forma simples de manipular por amostragem é escolher o período de tempo que mais lhe convém (e, muitas vezes, aplicar a manipulação de escala acima). Exemplo simples:



Os dois gráficos partem dos mesmos dados, mas o da esquerda pega dois anos de história do produto em questão e o da direita, de cerca de um ano. Veja como contam histórias diferentes: um deles é a história de um produto extremamente bem-sucedido, que teve uma ligeira estabilização nas vendas, mas voltou a subir. O outro é a história de um produto que cresceu muito, muito rápido, e logo começou a despencar. Se você olhar bem, no gráfico da esquerda, esse trecho parece quase uma linha reta.

Também é prática comum fazer uma pesquisa de opinião logo depois de um escândalo da mídia, quando se quer que alguma empresa, político ou celebridade apareçam sob luzes ruins. Ao se fazer uma pesquisa, timing é essencial.

Outra forma de manipulação por amostragem é selecionar discretamente quem vai responder sua pesquisa estatística.

Para usar um exemplo político, pequemos a candidata *ahem* Vilma, que tem uma base de voto em camadas de renda mais baixa e na região Nordeste e o candidato *ahem* Latércio, cuja base são as camadas mais bem favorecidas da população e a região sudeste.

Se você for uma agência que tem $impatia$ por Vilma, basta você mandar um número igual de coletores de dados (os carinhas de prancheta te perguntando em quem você vai votar) para cada Estado do Brasil. A região Nordeste é a que tem mais Estados. Logo, haverá mais coletores lá. Acrescente a isso a providência de mandar os coletores fazerem a pesquisa em horário de pico e em regiões mais frequentadas pelas camadas de mais baixa renda e boooom. Vilma estará bem colocada.

Se suas $impatia$ estiverem com Latércio, sem problemas. A região Sudeste do Brasil é a mais populosa. Logo, você pode decidir mandar para cada Estado um número de coletores de dados proporcional à população do mesmo. Assim, haverá mais coletores no Sudeste. Coloque seus coletores em horários logo antes ou logo depois dos horários de pico e em regiões mais frequentadas pela classe mais abastada e abracadabra, Latércio dispara na pesquisa.

Notem que isso não é necessariamente fraude. É intelectualmente desonesto, mas não é como se os coletores estivessem mentindo. Os dados são aqueles mesmo. Não dá pra processar as empresas de estatística por falarem a verdade, apesar de você poder questionar seus métodos.

E não, você não tem acesso a esses métodos por nenhuma maneira simples quando se tratam das pesquisas mostradas nos jornais e na TV. Não vou citar nomes pra não induzir ninguém a nada, mas no site de um instituto de pesquisa, eles explicam parcialmente seu método e oferecem um local onde você pode refinar os dados de acordo com certas parcelas da população. Mas algumas coisas não estão exatamente demonstradas lá, como o horário e endereço de coleta (mostrei acima como podem mudar o público atingido) ou o formulário que apresentam ao público para coletar os dados.

Aliás, quanto ao formulário de coleta, esse é outro problema...

3. Manipulação por indução do entrevistado

Imagino que a maior parte de vocês devem pensar que pesquisa de intenção de voto é algo simples. O entrevistador pergunta em quem você quer votar, lista os candidatos e você diz qual é sua escolha.

Eeeeerr... Não é bem assim. A maioria dos centros de pesquisa entregam um formulário enorme para a pessoa preencher. Normalmente, é uma maneira de disfarçar um pouco a pergunta principal da pesquisa, de modo a "desarmar" o entrevistado e se obter uma resposta mais honesta.

Já deu para perceber o quanto isso pode dar errado, né?

Um exemplo simples de como se pode manipular um resultado usando um formulário?

"Sr. Fulano, o senhor avalia o governo Di... er... Vilma como Ruim, Regular, Bom ou Ótimo?"

"Hum, sei lá, bom."

Outro pesquisador:

"Sr. Fulano, em termos de corrupção, o senhor avalia as instituições governamentais como Ruim, Regular, Bom ou Ótimo?"

"Ruim, bem ruim!"

"Sr. Fulano, o senhor avalia o governo Vilma como Ruim, Regular, Bom ou Ótimo?"

"Não tem horrível, não?"

Ainda outro pesquisador:

"Sr. Fulano, o senhor avalia o aumento do salário mínimo nos últimos anos como Ruim, Regular, Bom ou Ótimo?"

"Ah, foi bom!"

"Sr. Fulano, o senhor avalia o governo Vilma como Ruim, Regular, Bom ou Ótimo?"

"Quer saber, ele foi ótimo"

Claro, a maioria dos formulários não é tão cru, mas digamos não é algo difícil de ser feito. Na verdade, é algo tão fácil de acontecer que pode acontecer por acidente. Acidente ou não, não deixa de ser uma maneira de distorcer a percepção do entrevistado para que o coletor consiga determinado resultado.

Quando você para pra pensar, falar que uma pesquisa de opinião - não importa por qual instituto - tem dois ou três pontos percentuais de margem de erro é quase uma afronta.

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Esses são os modos mais fáceis de manipulação de resultados, mas nem de longe são os únicos. Tem manipulações matemáticas que você pode usar para conseguir gerar um gráfico que, visualmente, passe sensações positivas ou negativas a quem vê (o resultado final não é muito diferente do caso 1, de manipulação de escala, então não acho que vale a pena aprofundarmos nisso), sendo que até o design do gráfico pode ser mal-intencionado (tem muitas discussões legais por aí a esse respeito, procure o amigo designer mais próximo).

O mais importante que eu queria passar é que dados estatísticos são passados para o público depois de uma série de escolhas feitas por quem recolheu esses dados, e essas pessoas podem ter ideologias que distorçam a percepção final que o público terá desses dados.

Encarem os gráficos coloridos que surgirão durante as eleições com ceticismo, galera. E não só durante as eleições. Todo dia tem gráfico novo no jornal, e a maioria deles não está ali simplesmente para informar vocês. Eles querem vender uma ideia. Olho vivo!

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Sobre inveja e invejosos

Não é só nos últimos dias que ouço sobre inveja e invejosos, mas isso virou a polêmica do dia no círculo de escritores que eu acompanho e resolvi dar dois centavos sobre o assunto.

Para quem não acompanha a polêmica, há poucos dias, o escritor Raphael Draccon deu uma entrevista onde ele diz a famosa frase de que o escritor Rubem Fonseca não seria publicado hoje por não ter contatos ou "uma vida tão interessante quanto aquilo que escreve". Ele também causou polêmica ao dizer que "escritor que fala mal de escritor não entra na minha editora". Pouco depois, foi anunciado um reality show entre ele e sua esposa, Carolina Munhoz (que também é escritora).

A internet então explodiu de pessoas descascando o Draccon (e, até certo ponto, sua esposa), dizendo que os livros do casal são ruins e etc e tal, e ele e seus amigos se defenderam dizendo que as pessoas que falam mal dele têm inveja de seu sucesso.

Olha, não há vítimas nem carrascos nessa história toda. A entrevista do escritor pode ter sido o que for, mas o selo editorial é dele. O dinheiro, se não é dele, foi confiado a ele. Ele tem, então, o direito de escolher quaisquer critérios que queira para escolher quem publicar. Se isso vai dar dinheiro a ele ou não, o problema é de quem? Não é o sagrado dever de uma editora preservar a qualidade da literatura nacional. Editoras precisam fazer dinheiro pra se manterem. Se queremos lutar para bons livros serem publicados, mesmo que não se paguem, é hora de nós leitores e escritores nos unirmos para acharmos uma solução que não envolva dizer a uma instituição particular como gastar seu suado dinheirinho.

Por outro lado, Draccon e senhora não são gênios incompreendidos por uma turba de invejosos. Li a premissa e o primeiro capítulo do livro de ambos e nenhum me pegou, sendo que o primeiro livro de Munhoz (O Inverno das Fadas) tem uma qualidade técnica ruim. Não estou julgando no quesito entretenimento (só li o primeiro capítulo), mas na parte instrumental da escrita: uso de metáforas e frases de efeito, construção e alívio de tensão, ritmo de leitura, essas coisas. Ser tecnicamente ruim significa que o livro tem valor puramente de entretenimento, e isso significa que ele se vende somente para o nicho que goste apaixonadamente do tema de que ele trata (fadas, romance e um pouco de erotismo, no nosso caso) ou para leitores que ainda não tenham alguma tarimba. Isso não é um total demérito ao escritor, mas não faz dele um gênio da literatura. Na defesa de Munhoz, dizem que seu segundo livro, Feérica, é melhor que o primeiro. Não cheguei a ler, mas acredito sim, que ela tenha melhorado - é impressionante o que um simples ano de maturação faz com sua escrita, falo por experiência própria.

Isso dito, vamos falar de inveja. Basicamente, ter inveja é ver o sucesso de outra pessoa e acreditar que você tem mais mérito do que ela para obter esse sucesso. Que se houvesse justiça no mundo, era você que deveria estar no alto do pódio, já que você é melhor do que quem está lá. Se alguém me disser que nunca sentiu inveja na vida, ou essa pessoa me mostra a auréola dela, ou nada feito.

Inveja é um sentimento ruim? É. Ela mostra aquela arrogância latente dentro de cada um de nós? Ô. Mas você pode usá-la a seu favor, se essa inveja for um combustível para que você de fato persiga seu sonho e chegue ao sucesso que você tanto quer (de preferência, sem pisar em ninguém no caminho). Agora, inveja por inveja seguida de inércia é puro desgaste de energia.

Quando os defensores do casal Draccon chamaram os detratores de "maus escritores invejosos", eles fizeram uma generalização complexa. Sentir inveja não tem nada a ver com talento, é um sentimento humano: Leonardo da Vinci e Michelângelo, dois dos maiores gênios da Humanidade, sofriam de despeito crônico um pelo outro e falavam mal um do outro constantemente.

Não acredita? Extrato de uma carta de Michelângelo:

"Sobre aquele homem (Leonardo da Vinci) que escreveu dizendo que a pintura é mais nobre que a escultura, acho que minha empregada sabe mais do que ele."

Fonte: Clique Aqui

Dei uma chupinhada de uma revista Super online, mais por que esse incidente poderia ter acontecido ontem:

"O Michelangelo, 23 anos mais jovem que o rival, era irreverente, impetuoso e, não raro, malcriado. Sua intempestividade lhe rendeu brigas homéricas com os Médicis, a família florentina que patrocinava grande parte dos artistas da época. Discordava daqueles que viam em Leonardo um gênio. Mas, num cantinho qualquer do seu ateliê, Michelangelo se via na obrigação de estudar as experimentações de seu grande desafeto, por ele ter sido precursor de uma série de inovações técnicas – como o “claro/escuro”, o jogo de sombra e luz. “Michelangelo nutria por Leonardo um misto de inveja, discordância e admiração velada”, diz Maria Elisa de Oliveira Cezaretti, professora de História da Arte na Faculdade Belas Artes, de São Paulo.


Leonardo chamava a atenção, principalmente por sua excepcional beleza e seu porte físico. Estava acostumado a usar túnicas coloridas, em geral cor-de-rosa, que iam até os joelhos – um pouco curtas para os padrões da época, é verdade, mas sempre na moda. Deixava que a longa e encaracolada barba chegasse à metade do peito. E era festeiro: baladas eram com ele mesmo. “Leonardo participava de festas na corte, gostava de música, era bastante animado”, diz o artista plástico Percival Tirapeli, professor da Unesp. Foi graças a esse jeito que tinha para lidar com as pessoas, aliado a seu enorme talento, que ele conseguiu driblar a má-sorte de ter sido filho bastardo naquela época. (Na Itália renascentista, quem carregava tal rótulo era rechaçado pela sociedade.)
(...)
Para Vasari [historiador contemporâneo de Da Vinci e Michelângelo], porém, a inimizade entre ambos deveu-se a um evento particular: o único encontro casual entre os dois nas ruas de Florença de que se tem notícia. Leonardo passeava com um amigo perto do Palazzo Spini, onde um grupo de homens discutia uma passagem do Inferno, de Dante Aligheri, obra em evidência na época. (Florença vivia um momento de glória: era, ao mesmo tempo, o lar de Michelangelo, Leonardo, Dante, Rafael, Botticelli e vários outros artistas.) À determinada altura, os homens pediram que Leonardo lhes explicasse alguns trechos do Inferno, bem na hora em que Michelangelo passava pelo local. Leonardo, sabendo da admiração do jovem artista por Dante, disse então: “Michelangelo vai explicar para vocês”. Pensando que estava sendo ridicularizado, Michelangelo enraiveceu e insultou Leonardo. Criticou a sua obra inacabada mais famosa, o monumental cavalo de bronze encomendado por Ludovico Sforza, duque de Milão: “Explique-se você, que fez um modelo de cavalo que jamais poderia terminar!” Atingido no calo, já em casa, Leonardo viveu um momento de grande baixa autoestima. Escreveu num de seus inúmeros cadernos de anotações: “Conte-me, conte-me se alguma vez eu fiz alguma coisa...”, considerando que talvez nada do que fizera na vida até então tivesse valido a pena."

O resto da matéria está aqui: http://super.abril.com.br/cultura/leonardo-vinci-michelangelo-eles-nao-se-bicavam-460383.shtml

Agora que leram isso, olhem nos meus olhos e digam que Michelângelo era um "mau artista invejoso, que só sabia falar mal do sucesso de Leonardo". Ou, olhando por outro ângulo, digam na minha cara que Leonardo era só um cara arrogante que conseguiu seu sucesso porque era baladeiro e tinha contatos.

Hoje, está bem claro que ambos eram gênios, e ainda assim, havia inveja e amargura entre eles. Para alguém da época, aposto que os amigos de Leonardo desprezavam Michelângelo como um artista menor invejoso e os amigos de Michelângelo desprezavam Leonardo como um riquinho arrogante superestimado.

Meu ponto aqui é: é muito fácil julgar o outro como alguém que tem menos merecimento que você e está com mera inveja. Isso faz você se sentir confortável e não te obriga a partilhar a dor do outro, nem admitir que talvez - vejam só! - o outro realmente esteja justificado em seu sentimento de injustiça. Talvez o outro realmente tenha mais talento que você e foi desfavorecido por azar ou por não ter certos privilégios. Isso dói. Ninguém gosta de ser o privilegiado, o opressor. Mas às vezes, nós somos. Dizer "sua inveja é meu sucesso" é tão arrogante quanto ser invejoso.

Por outro lado, também é cômodo para as pessoas pintarem aquele que foi bem-sucedido como arrogante, preguiçoso e alguém que só está onde está por conta de sorte e privilégios. Faz com que pareça que qualquer esforço que você faça, por menor que seja, já é mais do que a pessoa fez. Agora convenhamos: não importa o quão cheia de contatos e privilégios uma pessoa seja: algum trabalho ela fez pra alcançar seu sucesso. Quanto trabalho? Quanto sacrifício? Jamais saberemos, não estamos na pele dessa pessoa.

Trazendo isso para a cena dos escritores que aludi acima, pensem aqui comigo: escritores vêm em todas as camadas sociais. Imagine um escritor "invejoso" que é, digamos, um professor que trabalha em dois turnos (manhã e tarde) e faz uns bicos em cursinho à noite pra pagar as contas, que só escreve nas poucas horas vagas (e com isso, mal tem tempo pras redes sociais e pra "construir redes de contato"), que custa a terminar o livro (e quando termina, ainda passa bastante tempo aperfeiçoando) e faz um produto que pode não ser uma obra-prima, mas é melhor do que pelo menos 50% do que se vê por aí. Esse escritor tem que ouvir que "nunca vai ser publicado porque é um ninguém e sua vida é chata", ou que "uai, se quer publicar tanto, tenta uma editora paga". Sendo que editora paga vai cobrar quase tanto quanto um carro usado e o escritor ainda vai ter que abrir mão de um de seus empregos (e deixar sua família na mão) pra sair por aí se promovendo e talvez vender alguma coisa. Gente, ninguém que tenha família ou que se sustente sozinho larga um emprego certo que malemal paga as contas por um duvidoso-sabe-Deus-quando-vou-receber-algo. Se ninguém investir nessa pessoa, ela não vai se profissionalizar. Agora me digam: por mais invejoso que esse escritor seja, alguém pode reclamar quando ele fica indignado porque ouve de alguém que virou escritor com a bênção dos pais que "você é só um invejoso sem talento que não foi publicado por que não quis nem se esforçou o bastante?" Alguém cujos pais o ajudaram em seu sustento enquanto ele estava nas redes sociais e trabalhando no livro, que vem aparentemente de uma esfera social muito acima da sua? Desculpe aí, pessoal, mas se sentir invejado, ou qualificar todos que reclamam de sua postura como invejoso é se declarar privilegiado e tapar os ouvidos ao sofrimento do outro. É de uma insensibilidade muito grande. Sim, claro que há invejosos que realmente não tem nada publicado porque nem sequer terminaram o livro e ainda assim queriam já ser popstars. Mas colocar todos os "indignados" no mesmo balaio não dá.

Com isso, não estou defendendo a "indignação", o "falar mal". Pra mim, falar mal de alguém, ou desqualificar alguém de "invejoso", "arrogante" ou "incompetente" é mal-educado e insensível, não importa o contexto ou a pessoa. Não há desculpas para ser ofensivo. E aqueles que estão em posição de sucesso ou de poder são seres humanos como outros quaisquer. O simples fato de serem ricos, bem-sucedidos e tal não faz deles não-humanos que podem ser ofendidos do jeito que queremos. Eles têm tristezas, dificuldades e fazem sacrifícios tanto quanto qualquer um. O sonho da vida de uma patricinha não é menos sonho do que o de uma pessoa pobre. Algumas vezes, elas fazem sacrifícios enormes de botar sua cara a tapa ou de realmente se esforçar em algo que muitos de nós nem sonhamos. A gente só vê a faze sorridente que as pessoas mostram no facebook, nos blogs e tal, mas a realidade por trás do virtual pode ser muito mais feia do que imaginamos. Tristeza numa mansão ainda é tristeza e os ricos com quem já conversei todos me disseram: não, uma TV de plasma não sufoca sua tristeza mais do que uma TV preto-e-branco. Ter dinheiro pra ir pra Europa e realmente ir pra lá rende boas fotos, mas dificilmente cura uma depressão ou uma baixa autoestima (vide Leonardo ali em cima). Sendo assim, já tem um tempo que não importa o quão arrogantes, falsos e aparentemente incompetentes as celebridades pareçam: tento me abster de qualquer julgamento e qualquer comentário ácido porque não dá pra saber. Não quero ser uma daquelas pessoas que bateu um dos pregos do caixão de alguém que só era feliz e bem-sucedido na aparência, mas cuja autoestima era tão baixa que um mero comentário mal-educado faz a pessoa se desgovernar.

Enfim. O que falta nessas discussões de invejosos/invejados é simples empatia humana. Não são fotografias que estão ali fazendo ou recebendo comentários. São pessoas. Um universo largo de gente diferente e com suas próprias alegrias e tristezas. Criticar um livro, dizer que tal trabalho, tal obra de arte, tem esse ou aquele defeito, é uma coisa. Usar essa crítica como arma para ofender o outro é indesculpável. Se o outro é alguém que você tem certeza de que ele é uma má pessoa, alguém baixo e vil, me responda: que mérito há em chutar quem já está caído? Em cuspir em quem está no fundo do poço? Se você não se sente com forças pra ajudar a pessoa a se reerguer, passe adiante e chame a ambulância sem agravar o sofrimento dela. Simples assim.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O preço de ser chefe

Ser faxineira é um emprego ingrato. Porque você é tratada como escrava, e porque as pessoas acham um absurdo o preço que você cobra pra fazer o serviço que elas não querem fazer. Algumas pessoas que destratam faxineiras usam da desculpa de que "estão pagando, querem o serviço direito". Justo. Vamos ver qual o preço de se ter essa postura? Qual o preço de se repreender uma faxineira sem peso na consciência?

O salário mínimo atual é de R$ 680,00. Isso quer dizer que, para uma jornada de trabalho típica de 40 horas, a pessoa receberá R$ 16,95 por hora. Lembremos que, além do salário, o trabalhador tem direito a vale-transporte. Em Belo Horizonte, um ônibus da BH-Trans tem passagem de R$ 2,65. É mais se você morar em outro município da região metropolitana, mas vou considerar apenas ônibus belorizontinos. Se você não seguir o exemplo do Estado de Minas e pagar vale-alimentação a seus funcionários, lembre-se de que um marmitex pequeno (a opção mais barata de almoço fora de casa em BH) é R$ 7,00. O depósito do FGTS para um trabalhador de carteira assinada que ganha salário mínimo é de 8% do valor do salário. Isso dá R$ 1,40 por hora trabalhada. Se você não assina a carteira de alguém, nada mais justo que dar o FGTS direto para a pessoa fazer o que bem entende com ele.

Para calcular, então, qual seria o preço justo a se pagar a uma empregada, só resta saber quantas horas ela trabalhará em sua casa. Uma faxina basicona, envolvendo varrer/aspirar o chão, tirar poeira, lavar a pia (e as vasilhas que inevitavelmente estarão lá), aguar as plantas, lavar banheiro e esfregar o chão da cozinha e da área, não se faz em menos de duas horas. Não mesmo, se você quiser um bom serviço. Adicione pelo menos meia hora para cada banheiro extra (uma hora se o box for de vidro e você o quiser brilhante), meia hora para cada pátio/garagem, pelo menos meia hora pra cada tarefa a mais que você quiser feita (lavar vidros, encerar os tacos, lavar caixa de gordura, etc) e meia hora pra cada semana que a casa ficou sem limpar.

Na verdade, a única maneira justa de saber quanto tempo leva uma faxina é fazer isso você mesmo e cronometrar. Cada casa é uma casa, algumas são menores e mais fáceis de limpar, outras são terríveis. Já morei em lugares onde contratávamos faxineiras, e vou adotar o tempo médio da faxina como três horas. É uma boa média pra uma faxina semanal (no último desses lugares que morei, a faxineira ficava quatro horas, mas a casa era grande). Usando os valores acima, o valor justo para a faxineira seria R$ 60,35. Isso se você não for pagar o almoço dela, o que você deveria fazer se a contratar para uma faxina que dure seis horas ou mais.

Parece muito? Ainda está saindo barato perto de todos os depósitos que você teria que fazer se ela tivesse carteira assinada. Ainda assim, muitas pessoas acham um absurdo que uma faxineira cobre mais do que 30 reais por faxina. Uma faxininha de duas horas ficaria em R$ 42,00 pelos valores acima.

Esse é o preço que você tem que pagar para começar a ter direitos de reclamar com sua empregada por um serviço malfeito. Qualquer valor abaixo disso, é um FAVOR que ela está fazendo, não emprego - emprego só é emprego se paga no mínimo o salário mínimo. E quando alguém faz um favor pra gente, não estamos exatamente em posição de ficar fazendo mil e uma exigências.

Ser chefe tem um preço. Nesse caso, o preço de ser chefe de uma pessoa (pra um serviço que não exige qualificação técnica ou superior) por 2 horas é, no mínimo, de R$ 42,00. Ou você paga, ou prepare-se pra fazer concessões àquele que está te fazendo a caridade de te atender por menos (assumindo que você não se aproveita da ignorância da pessoa, claro). É simples assim.

domingo, 25 de agosto de 2013

Minas Gerais

A mais recente coisa weird
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Minas Gerais


Lá, sobre os mares verdes de Minas, onde as vagas imóveis se encontram com um céu tingido de arco-íris, silencioso e invisível um pássaro paira.

Cá, na casa de lugar nenhum, onde pardos pardais se amontoam nos beirais, com as mãos crispadas no peito e uma capa de insondável negror, ansiosa e faminta ela aguarda.

E no meio do caminho, a verde-amarela cobertura dos prados se dobra e sussurra “ele vem, ele vem”. As cigarras fanfarram, intocadas que são pela sutileza. Na calmaria da antecipação, um carro corta uma estrada, mas até a poeira por ele levantada cai mais devagar.

Nos belos horizontes, eternos e inalcançáveis, onde o rosa se espraia e as nuvens se acendem como lâmpadas de neon, asas incomensuráveis ensaiam um farfalhar.

Ela sai da morada inexistente, incapaz de ser detida, suave e inevitável como as horas que ventam em seus cabelos, em busca do desejo que arde em seu coração.

Um mugido preguiçoso silencia todos os outros, os pássaros serenatam sobre o que era e já não é mais. As folhas das árvores repicam sua música ancestral, que impensáveis éons não lograram obliterar. E no marulho calmo dos rios, a luz busca seu último santuário.

Subitamente ele exibe suas plumas de imponderável azul, asas-braços bem abertos, na agonia triunfante que é um desafio, mas é também um convite.

Ela avança, sem parar, sem pensar, sem duvidar. Seu manto se espraia por distâncias incontáveis, inescrutável e cravejado de lantejoulas que apenas timidamente se anunciam.

E os dois se abraçam com a saudade de eras acumuladas, com a ânsia de amantes que têm apenas uma última chance de dizer adeus. E bailam, o negro se espraiando pelo azul, o azul acendendo os brilhantes do manto um a um.

Quando o pássaro exausto tomba e apenas finas plumas ainda borboleteiam no ar, ela tomba com ele, finalmente completa, finalmente saciada. Seu manto se desprende e permanece no ar, testemunha e cúmplice, início e fim.


E assim, o Homem conheceu a noite. E a noite viveu por doze horas, e teve filhos e filhas.

Pétalas de Neve

Mais coisas weird.
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Pétalas de neve


Neve em Barbacena? Mas não!

Neve era coisa das Europa, coisa que só aquele povo estudado já viu. Mas que parece neve, parece. Assim branquinha. Assim levinha.

Uma nevinha borboletou de manso e foi chegando. Ele não quis, mas ela pousou assim mesmo. Daí que ele viu que não era gelada, era macia. Era a pétala de uma flor branca.

Ele sorriu. Mas estava tão cansado, tanto! Tinha muitas repostas e poucas perguntas, e isso cansava taaaanto. “Penso, logo existo”, de repente, pareceu uma afirmação das mais questionáveis. Até pra existir, ele estava cansado. Como se apiedado dele, o chão tremia de leve, ninando-o, e um pássaro cantou suave, ao longe.

Quanto mais ele entregava os ossos cansados à terra, mais sentia o tremor massagear suas juntas cansadas e mais ouvia o pássaro. Em pouco tempo eram só o tremor e o pássaro, o tremor e o pássaro, o tremor e o pássaro, o tremor e o pássaro...

...Que na verdade, eram um trem.

O trem o atingiu e o jogou da linha.

Pronto, era o fim.



...Mas não, não era. Caído de mau jeito como estava, ele viu o trem passar. Todas as janelas tinham fantasmas com roupas bufantes multicores, rindo frouxamente e apontando para ele. Na última janela do último vagão, uma jovem de vestido rodado dava tchau com um lenço. Oh, Deus, era Dalva.

Ele fechou os olhos. O impacto com o trem não doera. A visão da moça, sim. O trem de doido seguiu célere para Barbacena, com seus fantasmas e risadas. Um toque acariciou seu nariz, lembrando que continuava a chuva de flópalas de flores. Ou seriam póculos de neve? Qualquer coisa assim, não importava. Importante mesmo era aquela dor. Dor de Estela.

Conhecera-a por acaso. Todos os dias, ele ia trabalhar passando por um cenário em branco. Tudo bem, não era um cenário branco. Mas tinha o mesmo efeito de um. Ela ia pra não sei onde, fazer não sei o quê. Todos os dias. Quando ela passava, o mundo explodia de sons e cheiros e casas e pessoas. Virava um mundo real. Quando ela ia, tudo se apagava de novo.

Mas a Gabriela era rica e ele, pobre. Não podia oferecê-la nada que ela não tivesse. E não foi por falta de tentar.

Ele tentou ir pra encruzilhada fazer pacto com o coisa-ruim-pé-de-bode. Mas não viu ninguém lá e desistiu. Só então ficou sabendo da velha parteira.

Ela era filha de bruxa – sussurravam – e sabia segredos. Quando foi visitá-la, ela lhe deu um saquinho de pano de pendurar no pescoço e disse, serena e assustadora:

“Cê é o minino que fica suspirando por aquela coisinha do vestido de frô? Aqui, ó, bota essa mandinga no pescoço por trêis dia que arresorve o pobrema. No fim do tercero dia, cê fica de corpo fechado. Usa isso pra impressioná a muié. Quando cês... fizere as coisa, sabe? As coisa da vida. Intão, quando cês fizere as coisa, seu corpo abre de vorta e cês fica junto pra sempre. É tiro e queda.”

E ele nunca mais viu a velha de novo. Seu eu jovem e apressado só ouvira o “cês fica junto pra sempre”. Botou o feitiço no pescoço, ficou de corpo fechado, virou o heroi da região. Parava touro na unha, entrava em casa pegando fogo pra salvar gente, enfrentava bandido de arma na mão. E a Gisele? Casou com J. Pinto Fernandes, mudou pra capital e não convidou ninguém.

Ele se jogou na água, mas não se afogou. Se jogou no fogo, mas não se queimou. Ele tinha o corpo fechado, ainda.

De tanto procurou a morte que ele a achou. Ela gostou dele e passou a segui-lo como um cão fiel. E, como todo cão fiel, fazia pirraça quando o dono não dava atenção. Só de birra, a morte levava todo mundo em volta dele. Todo mundo. Todo mundo. Todo, todo, todo mundo. Como um cão carente de a-ten...ção...

Espera! Espera, espera, espera!

O que Ceifador, o velho mastim, tinha que ver com Milena? Droga, como as coisas estavam embaralhadas. O que ele se lembrava tinha acontecido com ele, ou foi alguma coisa que ele viu falar? Nossa! Como estava cansado!

Levantou-se. Loucura. Era isso. A palavra reverberava em todos os cantos de sua cabeça oca. Nada daquilo tinha acontecido. Moça-diabo-bruxa-corpo-morte. Nada estava no lugar, nada!

Se ele estava louco – e que alívio não lhe dava admitir aquilo! – devia partir o quanto antes. Não importava pra onde iria. Estava louco, todos os caminhos que seguisse levariam a Barbacena. Estava longe ou perto a cidade? Boa pergunta, aquela. Por via das dúvidas, ele decidiu correr. Não queria perder o trem das onze.

A noite estava densa com o perfume de flores molhadas de sereno. O perfume lembrava Maria. Não, era Sofia! Não!... Ah, maldição, ele estava confundindo tudo, tudo!

Era como as flórulas de febre e os pecados de noivos.

Ou qualquer coisa nesse gênero.