sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Sobre inveja e invejosos

Não é só nos últimos dias que ouço sobre inveja e invejosos, mas isso virou a polêmica do dia no círculo de escritores que eu acompanho e resolvi dar dois centavos sobre o assunto.

Para quem não acompanha a polêmica, há poucos dias, o escritor Raphael Draccon deu uma entrevista onde ele diz a famosa frase de que o escritor Rubem Fonseca não seria publicado hoje por não ter contatos ou "uma vida tão interessante quanto aquilo que escreve". Ele também causou polêmica ao dizer que "escritor que fala mal de escritor não entra na minha editora". Pouco depois, foi anunciado um reality show entre ele e sua esposa, Carolina Munhoz (que também é escritora).

A internet então explodiu de pessoas descascando o Draccon (e, até certo ponto, sua esposa), dizendo que os livros do casal são ruins e etc e tal, e ele e seus amigos se defenderam dizendo que as pessoas que falam mal dele têm inveja de seu sucesso.

Olha, não há vítimas nem carrascos nessa história toda. A entrevista do escritor pode ter sido o que for, mas o selo editorial é dele. O dinheiro, se não é dele, foi confiado a ele. Ele tem, então, o direito de escolher quaisquer critérios que queira para escolher quem publicar. Se isso vai dar dinheiro a ele ou não, o problema é de quem? Não é o sagrado dever de uma editora preservar a qualidade da literatura nacional. Editoras precisam fazer dinheiro pra se manterem. Se queremos lutar para bons livros serem publicados, mesmo que não se paguem, é hora de nós leitores e escritores nos unirmos para acharmos uma solução que não envolva dizer a uma instituição particular como gastar seu suado dinheirinho.

Por outro lado, Draccon e senhora não são gênios incompreendidos por uma turba de invejosos. Li a premissa e o primeiro capítulo do livro de ambos e nenhum me pegou, sendo que o primeiro livro de Munhoz (O Inverno das Fadas) tem uma qualidade técnica ruim. Não estou julgando no quesito entretenimento (só li o primeiro capítulo), mas na parte instrumental da escrita: uso de metáforas e frases de efeito, construção e alívio de tensão, ritmo de leitura, essas coisas. Ser tecnicamente ruim significa que o livro tem valor puramente de entretenimento, e isso significa que ele se vende somente para o nicho que goste apaixonadamente do tema de que ele trata (fadas, romance e um pouco de erotismo, no nosso caso) ou para leitores que ainda não tenham alguma tarimba. Isso não é um total demérito ao escritor, mas não faz dele um gênio da literatura. Na defesa de Munhoz, dizem que seu segundo livro, Feérica, é melhor que o primeiro. Não cheguei a ler, mas acredito sim, que ela tenha melhorado - é impressionante o que um simples ano de maturação faz com sua escrita, falo por experiência própria.

Isso dito, vamos falar de inveja. Basicamente, ter inveja é ver o sucesso de outra pessoa e acreditar que você tem mais mérito do que ela para obter esse sucesso. Que se houvesse justiça no mundo, era você que deveria estar no alto do pódio, já que você é melhor do que quem está lá. Se alguém me disser que nunca sentiu inveja na vida, ou essa pessoa me mostra a auréola dela, ou nada feito.

Inveja é um sentimento ruim? É. Ela mostra aquela arrogância latente dentro de cada um de nós? Ô. Mas você pode usá-la a seu favor, se essa inveja for um combustível para que você de fato persiga seu sonho e chegue ao sucesso que você tanto quer (de preferência, sem pisar em ninguém no caminho). Agora, inveja por inveja seguida de inércia é puro desgaste de energia.

Quando os defensores do casal Draccon chamaram os detratores de "maus escritores invejosos", eles fizeram uma generalização complexa. Sentir inveja não tem nada a ver com talento, é um sentimento humano: Leonardo da Vinci e Michelângelo, dois dos maiores gênios da Humanidade, sofriam de despeito crônico um pelo outro e falavam mal um do outro constantemente.

Não acredita? Extrato de uma carta de Michelângelo:

"Sobre aquele homem (Leonardo da Vinci) que escreveu dizendo que a pintura é mais nobre que a escultura, acho que minha empregada sabe mais do que ele."

Fonte: Clique Aqui

Dei uma chupinhada de uma revista Super online, mais por que esse incidente poderia ter acontecido ontem:

"O Michelangelo, 23 anos mais jovem que o rival, era irreverente, impetuoso e, não raro, malcriado. Sua intempestividade lhe rendeu brigas homéricas com os Médicis, a família florentina que patrocinava grande parte dos artistas da época. Discordava daqueles que viam em Leonardo um gênio. Mas, num cantinho qualquer do seu ateliê, Michelangelo se via na obrigação de estudar as experimentações de seu grande desafeto, por ele ter sido precursor de uma série de inovações técnicas – como o “claro/escuro”, o jogo de sombra e luz. “Michelangelo nutria por Leonardo um misto de inveja, discordância e admiração velada”, diz Maria Elisa de Oliveira Cezaretti, professora de História da Arte na Faculdade Belas Artes, de São Paulo.


Leonardo chamava a atenção, principalmente por sua excepcional beleza e seu porte físico. Estava acostumado a usar túnicas coloridas, em geral cor-de-rosa, que iam até os joelhos – um pouco curtas para os padrões da época, é verdade, mas sempre na moda. Deixava que a longa e encaracolada barba chegasse à metade do peito. E era festeiro: baladas eram com ele mesmo. “Leonardo participava de festas na corte, gostava de música, era bastante animado”, diz o artista plástico Percival Tirapeli, professor da Unesp. Foi graças a esse jeito que tinha para lidar com as pessoas, aliado a seu enorme talento, que ele conseguiu driblar a má-sorte de ter sido filho bastardo naquela época. (Na Itália renascentista, quem carregava tal rótulo era rechaçado pela sociedade.)
(...)
Para Vasari [historiador contemporâneo de Da Vinci e Michelângelo], porém, a inimizade entre ambos deveu-se a um evento particular: o único encontro casual entre os dois nas ruas de Florença de que se tem notícia. Leonardo passeava com um amigo perto do Palazzo Spini, onde um grupo de homens discutia uma passagem do Inferno, de Dante Aligheri, obra em evidência na época. (Florença vivia um momento de glória: era, ao mesmo tempo, o lar de Michelangelo, Leonardo, Dante, Rafael, Botticelli e vários outros artistas.) À determinada altura, os homens pediram que Leonardo lhes explicasse alguns trechos do Inferno, bem na hora em que Michelangelo passava pelo local. Leonardo, sabendo da admiração do jovem artista por Dante, disse então: “Michelangelo vai explicar para vocês”. Pensando que estava sendo ridicularizado, Michelangelo enraiveceu e insultou Leonardo. Criticou a sua obra inacabada mais famosa, o monumental cavalo de bronze encomendado por Ludovico Sforza, duque de Milão: “Explique-se você, que fez um modelo de cavalo que jamais poderia terminar!” Atingido no calo, já em casa, Leonardo viveu um momento de grande baixa autoestima. Escreveu num de seus inúmeros cadernos de anotações: “Conte-me, conte-me se alguma vez eu fiz alguma coisa...”, considerando que talvez nada do que fizera na vida até então tivesse valido a pena."

O resto da matéria está aqui: http://super.abril.com.br/cultura/leonardo-vinci-michelangelo-eles-nao-se-bicavam-460383.shtml

Agora que leram isso, olhem nos meus olhos e digam que Michelângelo era um "mau artista invejoso, que só sabia falar mal do sucesso de Leonardo". Ou, olhando por outro ângulo, digam na minha cara que Leonardo era só um cara arrogante que conseguiu seu sucesso porque era baladeiro e tinha contatos.

Hoje, está bem claro que ambos eram gênios, e ainda assim, havia inveja e amargura entre eles. Para alguém da época, aposto que os amigos de Leonardo desprezavam Michelângelo como um artista menor invejoso e os amigos de Michelângelo desprezavam Leonardo como um riquinho arrogante superestimado.

Meu ponto aqui é: é muito fácil julgar o outro como alguém que tem menos merecimento que você e está com mera inveja. Isso faz você se sentir confortável e não te obriga a partilhar a dor do outro, nem admitir que talvez - vejam só! - o outro realmente esteja justificado em seu sentimento de injustiça. Talvez o outro realmente tenha mais talento que você e foi desfavorecido por azar ou por não ter certos privilégios. Isso dói. Ninguém gosta de ser o privilegiado, o opressor. Mas às vezes, nós somos. Dizer "sua inveja é meu sucesso" é tão arrogante quanto ser invejoso.

Por outro lado, também é cômodo para as pessoas pintarem aquele que foi bem-sucedido como arrogante, preguiçoso e alguém que só está onde está por conta de sorte e privilégios. Faz com que pareça que qualquer esforço que você faça, por menor que seja, já é mais do que a pessoa fez. Agora convenhamos: não importa o quão cheia de contatos e privilégios uma pessoa seja: algum trabalho ela fez pra alcançar seu sucesso. Quanto trabalho? Quanto sacrifício? Jamais saberemos, não estamos na pele dessa pessoa.

Trazendo isso para a cena dos escritores que aludi acima, pensem aqui comigo: escritores vêm em todas as camadas sociais. Imagine um escritor "invejoso" que é, digamos, um professor que trabalha em dois turnos (manhã e tarde) e faz uns bicos em cursinho à noite pra pagar as contas, que só escreve nas poucas horas vagas (e com isso, mal tem tempo pras redes sociais e pra "construir redes de contato"), que custa a terminar o livro (e quando termina, ainda passa bastante tempo aperfeiçoando) e faz um produto que pode não ser uma obra-prima, mas é melhor do que pelo menos 50% do que se vê por aí. Esse escritor tem que ouvir que "nunca vai ser publicado porque é um ninguém e sua vida é chata", ou que "uai, se quer publicar tanto, tenta uma editora paga". Sendo que editora paga vai cobrar quase tanto quanto um carro usado e o escritor ainda vai ter que abrir mão de um de seus empregos (e deixar sua família na mão) pra sair por aí se promovendo e talvez vender alguma coisa. Gente, ninguém que tenha família ou que se sustente sozinho larga um emprego certo que malemal paga as contas por um duvidoso-sabe-Deus-quando-vou-receber-algo. Se ninguém investir nessa pessoa, ela não vai se profissionalizar. Agora me digam: por mais invejoso que esse escritor seja, alguém pode reclamar quando ele fica indignado porque ouve de alguém que virou escritor com a bênção dos pais que "você é só um invejoso sem talento que não foi publicado por que não quis nem se esforçou o bastante?" Alguém cujos pais o ajudaram em seu sustento enquanto ele estava nas redes sociais e trabalhando no livro, que vem aparentemente de uma esfera social muito acima da sua? Desculpe aí, pessoal, mas se sentir invejado, ou qualificar todos que reclamam de sua postura como invejoso é se declarar privilegiado e tapar os ouvidos ao sofrimento do outro. É de uma insensibilidade muito grande. Sim, claro que há invejosos que realmente não tem nada publicado porque nem sequer terminaram o livro e ainda assim queriam já ser popstars. Mas colocar todos os "indignados" no mesmo balaio não dá.

Com isso, não estou defendendo a "indignação", o "falar mal". Pra mim, falar mal de alguém, ou desqualificar alguém de "invejoso", "arrogante" ou "incompetente" é mal-educado e insensível, não importa o contexto ou a pessoa. Não há desculpas para ser ofensivo. E aqueles que estão em posição de sucesso ou de poder são seres humanos como outros quaisquer. O simples fato de serem ricos, bem-sucedidos e tal não faz deles não-humanos que podem ser ofendidos do jeito que queremos. Eles têm tristezas, dificuldades e fazem sacrifícios tanto quanto qualquer um. O sonho da vida de uma patricinha não é menos sonho do que o de uma pessoa pobre. Algumas vezes, elas fazem sacrifícios enormes de botar sua cara a tapa ou de realmente se esforçar em algo que muitos de nós nem sonhamos. A gente só vê a faze sorridente que as pessoas mostram no facebook, nos blogs e tal, mas a realidade por trás do virtual pode ser muito mais feia do que imaginamos. Tristeza numa mansão ainda é tristeza e os ricos com quem já conversei todos me disseram: não, uma TV de plasma não sufoca sua tristeza mais do que uma TV preto-e-branco. Ter dinheiro pra ir pra Europa e realmente ir pra lá rende boas fotos, mas dificilmente cura uma depressão ou uma baixa autoestima (vide Leonardo ali em cima). Sendo assim, já tem um tempo que não importa o quão arrogantes, falsos e aparentemente incompetentes as celebridades pareçam: tento me abster de qualquer julgamento e qualquer comentário ácido porque não dá pra saber. Não quero ser uma daquelas pessoas que bateu um dos pregos do caixão de alguém que só era feliz e bem-sucedido na aparência, mas cuja autoestima era tão baixa que um mero comentário mal-educado faz a pessoa se desgovernar.

Enfim. O que falta nessas discussões de invejosos/invejados é simples empatia humana. Não são fotografias que estão ali fazendo ou recebendo comentários. São pessoas. Um universo largo de gente diferente e com suas próprias alegrias e tristezas. Criticar um livro, dizer que tal trabalho, tal obra de arte, tem esse ou aquele defeito, é uma coisa. Usar essa crítica como arma para ofender o outro é indesculpável. Se o outro é alguém que você tem certeza de que ele é uma má pessoa, alguém baixo e vil, me responda: que mérito há em chutar quem já está caído? Em cuspir em quem está no fundo do poço? Se você não se sente com forças pra ajudar a pessoa a se reerguer, passe adiante e chame a ambulância sem agravar o sofrimento dela. Simples assim.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O preço de ser chefe

Ser faxineira é um emprego ingrato. Porque você é tratada como escrava, e porque as pessoas acham um absurdo o preço que você cobra pra fazer o serviço que elas não querem fazer. Algumas pessoas que destratam faxineiras usam da desculpa de que "estão pagando, querem o serviço direito". Justo. Vamos ver qual o preço de se ter essa postura? Qual o preço de se repreender uma faxineira sem peso na consciência?

O salário mínimo atual é de R$ 680,00. Isso quer dizer que, para uma jornada de trabalho típica de 40 horas, a pessoa receberá R$ 16,95 por hora. Lembremos que, além do salário, o trabalhador tem direito a vale-transporte. Em Belo Horizonte, um ônibus da BH-Trans tem passagem de R$ 2,65. É mais se você morar em outro município da região metropolitana, mas vou considerar apenas ônibus belorizontinos. Se você não seguir o exemplo do Estado de Minas e pagar vale-alimentação a seus funcionários, lembre-se de que um marmitex pequeno (a opção mais barata de almoço fora de casa em BH) é R$ 7,00. O depósito do FGTS para um trabalhador de carteira assinada que ganha salário mínimo é de 8% do valor do salário. Isso dá R$ 1,40 por hora trabalhada. Se você não assina a carteira de alguém, nada mais justo que dar o FGTS direto para a pessoa fazer o que bem entende com ele.

Para calcular, então, qual seria o preço justo a se pagar a uma empregada, só resta saber quantas horas ela trabalhará em sua casa. Uma faxina basicona, envolvendo varrer/aspirar o chão, tirar poeira, lavar a pia (e as vasilhas que inevitavelmente estarão lá), aguar as plantas, lavar banheiro e esfregar o chão da cozinha e da área, não se faz em menos de duas horas. Não mesmo, se você quiser um bom serviço. Adicione pelo menos meia hora para cada banheiro extra (uma hora se o box for de vidro e você o quiser brilhante), meia hora para cada pátio/garagem, pelo menos meia hora pra cada tarefa a mais que você quiser feita (lavar vidros, encerar os tacos, lavar caixa de gordura, etc) e meia hora pra cada semana que a casa ficou sem limpar.

Na verdade, a única maneira justa de saber quanto tempo leva uma faxina é fazer isso você mesmo e cronometrar. Cada casa é uma casa, algumas são menores e mais fáceis de limpar, outras são terríveis. Já morei em lugares onde contratávamos faxineiras, e vou adotar o tempo médio da faxina como três horas. É uma boa média pra uma faxina semanal (no último desses lugares que morei, a faxineira ficava quatro horas, mas a casa era grande). Usando os valores acima, o valor justo para a faxineira seria R$ 60,35. Isso se você não for pagar o almoço dela, o que você deveria fazer se a contratar para uma faxina que dure seis horas ou mais.

Parece muito? Ainda está saindo barato perto de todos os depósitos que você teria que fazer se ela tivesse carteira assinada. Ainda assim, muitas pessoas acham um absurdo que uma faxineira cobre mais do que 30 reais por faxina. Uma faxininha de duas horas ficaria em R$ 42,00 pelos valores acima.

Esse é o preço que você tem que pagar para começar a ter direitos de reclamar com sua empregada por um serviço malfeito. Qualquer valor abaixo disso, é um FAVOR que ela está fazendo, não emprego - emprego só é emprego se paga no mínimo o salário mínimo. E quando alguém faz um favor pra gente, não estamos exatamente em posição de ficar fazendo mil e uma exigências.

Ser chefe tem um preço. Nesse caso, o preço de ser chefe de uma pessoa (pra um serviço que não exige qualificação técnica ou superior) por 2 horas é, no mínimo, de R$ 42,00. Ou você paga, ou prepare-se pra fazer concessões àquele que está te fazendo a caridade de te atender por menos (assumindo que você não se aproveita da ignorância da pessoa, claro). É simples assim.

domingo, 25 de agosto de 2013

Minas Gerais

A mais recente coisa weird
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Minas Gerais


Lá, sobre os mares verdes de Minas, onde as vagas imóveis se encontram com um céu tingido de arco-íris, silencioso e invisível um pássaro paira.

Cá, na casa de lugar nenhum, onde pardos pardais se amontoam nos beirais, com as mãos crispadas no peito e uma capa de insondável negror, ansiosa e faminta ela aguarda.

E no meio do caminho, a verde-amarela cobertura dos prados se dobra e sussurra “ele vem, ele vem”. As cigarras fanfarram, intocadas que são pela sutileza. Na calmaria da antecipação, um carro corta uma estrada, mas até a poeira por ele levantada cai mais devagar.

Nos belos horizontes, eternos e inalcançáveis, onde o rosa se espraia e as nuvens se acendem como lâmpadas de neon, asas incomensuráveis ensaiam um farfalhar.

Ela sai da morada inexistente, incapaz de ser detida, suave e inevitável como as horas que ventam em seus cabelos, em busca do desejo que arde em seu coração.

Um mugido preguiçoso silencia todos os outros, os pássaros serenatam sobre o que era e já não é mais. As folhas das árvores repicam sua música ancestral, que impensáveis éons não lograram obliterar. E no marulho calmo dos rios, a luz busca seu último santuário.

Subitamente ele exibe suas plumas de imponderável azul, asas-braços bem abertos, na agonia triunfante que é um desafio, mas é também um convite.

Ela avança, sem parar, sem pensar, sem duvidar. Seu manto se espraia por distâncias incontáveis, inescrutável e cravejado de lantejoulas que apenas timidamente se anunciam.

E os dois se abraçam com a saudade de eras acumuladas, com a ânsia de amantes que têm apenas uma última chance de dizer adeus. E bailam, o negro se espraiando pelo azul, o azul acendendo os brilhantes do manto um a um.

Quando o pássaro exausto tomba e apenas finas plumas ainda borboleteiam no ar, ela tomba com ele, finalmente completa, finalmente saciada. Seu manto se desprende e permanece no ar, testemunha e cúmplice, início e fim.


E assim, o Homem conheceu a noite. E a noite viveu por doze horas, e teve filhos e filhas.

Pétalas de Neve

Mais coisas weird.
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Pétalas de neve


Neve em Barbacena? Mas não!

Neve era coisa das Europa, coisa que só aquele povo estudado já viu. Mas que parece neve, parece. Assim branquinha. Assim levinha.

Uma nevinha borboletou de manso e foi chegando. Ele não quis, mas ela pousou assim mesmo. Daí que ele viu que não era gelada, era macia. Era a pétala de uma flor branca.

Ele sorriu. Mas estava tão cansado, tanto! Tinha muitas repostas e poucas perguntas, e isso cansava taaaanto. “Penso, logo existo”, de repente, pareceu uma afirmação das mais questionáveis. Até pra existir, ele estava cansado. Como se apiedado dele, o chão tremia de leve, ninando-o, e um pássaro cantou suave, ao longe.

Quanto mais ele entregava os ossos cansados à terra, mais sentia o tremor massagear suas juntas cansadas e mais ouvia o pássaro. Em pouco tempo eram só o tremor e o pássaro, o tremor e o pássaro, o tremor e o pássaro, o tremor e o pássaro...

...Que na verdade, eram um trem.

O trem o atingiu e o jogou da linha.

Pronto, era o fim.



...Mas não, não era. Caído de mau jeito como estava, ele viu o trem passar. Todas as janelas tinham fantasmas com roupas bufantes multicores, rindo frouxamente e apontando para ele. Na última janela do último vagão, uma jovem de vestido rodado dava tchau com um lenço. Oh, Deus, era Dalva.

Ele fechou os olhos. O impacto com o trem não doera. A visão da moça, sim. O trem de doido seguiu célere para Barbacena, com seus fantasmas e risadas. Um toque acariciou seu nariz, lembrando que continuava a chuva de flópalas de flores. Ou seriam póculos de neve? Qualquer coisa assim, não importava. Importante mesmo era aquela dor. Dor de Estela.

Conhecera-a por acaso. Todos os dias, ele ia trabalhar passando por um cenário em branco. Tudo bem, não era um cenário branco. Mas tinha o mesmo efeito de um. Ela ia pra não sei onde, fazer não sei o quê. Todos os dias. Quando ela passava, o mundo explodia de sons e cheiros e casas e pessoas. Virava um mundo real. Quando ela ia, tudo se apagava de novo.

Mas a Gabriela era rica e ele, pobre. Não podia oferecê-la nada que ela não tivesse. E não foi por falta de tentar.

Ele tentou ir pra encruzilhada fazer pacto com o coisa-ruim-pé-de-bode. Mas não viu ninguém lá e desistiu. Só então ficou sabendo da velha parteira.

Ela era filha de bruxa – sussurravam – e sabia segredos. Quando foi visitá-la, ela lhe deu um saquinho de pano de pendurar no pescoço e disse, serena e assustadora:

“Cê é o minino que fica suspirando por aquela coisinha do vestido de frô? Aqui, ó, bota essa mandinga no pescoço por trêis dia que arresorve o pobrema. No fim do tercero dia, cê fica de corpo fechado. Usa isso pra impressioná a muié. Quando cês... fizere as coisa, sabe? As coisa da vida. Intão, quando cês fizere as coisa, seu corpo abre de vorta e cês fica junto pra sempre. É tiro e queda.”

E ele nunca mais viu a velha de novo. Seu eu jovem e apressado só ouvira o “cês fica junto pra sempre”. Botou o feitiço no pescoço, ficou de corpo fechado, virou o heroi da região. Parava touro na unha, entrava em casa pegando fogo pra salvar gente, enfrentava bandido de arma na mão. E a Gisele? Casou com J. Pinto Fernandes, mudou pra capital e não convidou ninguém.

Ele se jogou na água, mas não se afogou. Se jogou no fogo, mas não se queimou. Ele tinha o corpo fechado, ainda.

De tanto procurou a morte que ele a achou. Ela gostou dele e passou a segui-lo como um cão fiel. E, como todo cão fiel, fazia pirraça quando o dono não dava atenção. Só de birra, a morte levava todo mundo em volta dele. Todo mundo. Todo mundo. Todo, todo, todo mundo. Como um cão carente de a-ten...ção...

Espera! Espera, espera, espera!

O que Ceifador, o velho mastim, tinha que ver com Milena? Droga, como as coisas estavam embaralhadas. O que ele se lembrava tinha acontecido com ele, ou foi alguma coisa que ele viu falar? Nossa! Como estava cansado!

Levantou-se. Loucura. Era isso. A palavra reverberava em todos os cantos de sua cabeça oca. Nada daquilo tinha acontecido. Moça-diabo-bruxa-corpo-morte. Nada estava no lugar, nada!

Se ele estava louco – e que alívio não lhe dava admitir aquilo! – devia partir o quanto antes. Não importava pra onde iria. Estava louco, todos os caminhos que seguisse levariam a Barbacena. Estava longe ou perto a cidade? Boa pergunta, aquela. Por via das dúvidas, ele decidiu correr. Não queria perder o trem das onze.

A noite estava densa com o perfume de flores molhadas de sereno. O perfume lembrava Maria. Não, era Sofia! Não!... Ah, maldição, ele estava confundindo tudo, tudo!

Era como as flórulas de febre e os pecados de noivos.

Ou qualquer coisa nesse gênero.