segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O preço de ser chefe

Ser faxineira é um emprego ingrato. Porque você é tratada como escrava, e porque as pessoas acham um absurdo o preço que você cobra pra fazer o serviço que elas não querem fazer. Algumas pessoas que destratam faxineiras usam da desculpa de que "estão pagando, querem o serviço direito". Justo. Vamos ver qual o preço de se ter essa postura? Qual o preço de se repreender uma faxineira sem peso na consciência?

O salário mínimo atual é de R$ 680,00. Isso quer dizer que, para uma jornada de trabalho típica de 40 horas, a pessoa receberá R$ 16,95 por hora. Lembremos que, além do salário, o trabalhador tem direito a vale-transporte. Em Belo Horizonte, um ônibus da BH-Trans tem passagem de R$ 2,65. É mais se você morar em outro município da região metropolitana, mas vou considerar apenas ônibus belorizontinos. Se você não seguir o exemplo do Estado de Minas e pagar vale-alimentação a seus funcionários, lembre-se de que um marmitex pequeno (a opção mais barata de almoço fora de casa em BH) é R$ 7,00. O depósito do FGTS para um trabalhador de carteira assinada que ganha salário mínimo é de 8% do valor do salário. Isso dá R$ 1,40 por hora trabalhada. Se você não assina a carteira de alguém, nada mais justo que dar o FGTS direto para a pessoa fazer o que bem entende com ele.

Para calcular, então, qual seria o preço justo a se pagar a uma empregada, só resta saber quantas horas ela trabalhará em sua casa. Uma faxina basicona, envolvendo varrer/aspirar o chão, tirar poeira, lavar a pia (e as vasilhas que inevitavelmente estarão lá), aguar as plantas, lavar banheiro e esfregar o chão da cozinha e da área, não se faz em menos de duas horas. Não mesmo, se você quiser um bom serviço. Adicione pelo menos meia hora para cada banheiro extra (uma hora se o box for de vidro e você o quiser brilhante), meia hora para cada pátio/garagem, pelo menos meia hora pra cada tarefa a mais que você quiser feita (lavar vidros, encerar os tacos, lavar caixa de gordura, etc) e meia hora pra cada semana que a casa ficou sem limpar.

Na verdade, a única maneira justa de saber quanto tempo leva uma faxina é fazer isso você mesmo e cronometrar. Cada casa é uma casa, algumas são menores e mais fáceis de limpar, outras são terríveis. Já morei em lugares onde contratávamos faxineiras, e vou adotar o tempo médio da faxina como três horas. É uma boa média pra uma faxina semanal (no último desses lugares que morei, a faxineira ficava quatro horas, mas a casa era grande). Usando os valores acima, o valor justo para a faxineira seria R$ 60,35. Isso se você não for pagar o almoço dela, o que você deveria fazer se a contratar para uma faxina que dure seis horas ou mais.

Parece muito? Ainda está saindo barato perto de todos os depósitos que você teria que fazer se ela tivesse carteira assinada. Ainda assim, muitas pessoas acham um absurdo que uma faxineira cobre mais do que 30 reais por faxina. Uma faxininha de duas horas ficaria em R$ 42,00 pelos valores acima.

Esse é o preço que você tem que pagar para começar a ter direitos de reclamar com sua empregada por um serviço malfeito. Qualquer valor abaixo disso, é um FAVOR que ela está fazendo, não emprego - emprego só é emprego se paga no mínimo o salário mínimo. E quando alguém faz um favor pra gente, não estamos exatamente em posição de ficar fazendo mil e uma exigências.

Ser chefe tem um preço. Nesse caso, o preço de ser chefe de uma pessoa (pra um serviço que não exige qualificação técnica ou superior) por 2 horas é, no mínimo, de R$ 42,00. Ou você paga, ou prepare-se pra fazer concessões àquele que está te fazendo a caridade de te atender por menos (assumindo que você não se aproveita da ignorância da pessoa, claro). É simples assim.

domingo, 25 de agosto de 2013

Minas Gerais

A mais recente coisa weird
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Minas Gerais


Lá, sobre os mares verdes de Minas, onde as vagas imóveis se encontram com um céu tingido de arco-íris, silencioso e invisível um pássaro paira.

Cá, na casa de lugar nenhum, onde pardos pardais se amontoam nos beirais, com as mãos crispadas no peito e uma capa de insondável negror, ansiosa e faminta ela aguarda.

E no meio do caminho, a verde-amarela cobertura dos prados se dobra e sussurra “ele vem, ele vem”. As cigarras fanfarram, intocadas que são pela sutileza. Na calmaria da antecipação, um carro corta uma estrada, mas até a poeira por ele levantada cai mais devagar.

Nos belos horizontes, eternos e inalcançáveis, onde o rosa se espraia e as nuvens se acendem como lâmpadas de neon, asas incomensuráveis ensaiam um farfalhar.

Ela sai da morada inexistente, incapaz de ser detida, suave e inevitável como as horas que ventam em seus cabelos, em busca do desejo que arde em seu coração.

Um mugido preguiçoso silencia todos os outros, os pássaros serenatam sobre o que era e já não é mais. As folhas das árvores repicam sua música ancestral, que impensáveis éons não lograram obliterar. E no marulho calmo dos rios, a luz busca seu último santuário.

Subitamente ele exibe suas plumas de imponderável azul, asas-braços bem abertos, na agonia triunfante que é um desafio, mas é também um convite.

Ela avança, sem parar, sem pensar, sem duvidar. Seu manto se espraia por distâncias incontáveis, inescrutável e cravejado de lantejoulas que apenas timidamente se anunciam.

E os dois se abraçam com a saudade de eras acumuladas, com a ânsia de amantes que têm apenas uma última chance de dizer adeus. E bailam, o negro se espraiando pelo azul, o azul acendendo os brilhantes do manto um a um.

Quando o pássaro exausto tomba e apenas finas plumas ainda borboleteiam no ar, ela tomba com ele, finalmente completa, finalmente saciada. Seu manto se desprende e permanece no ar, testemunha e cúmplice, início e fim.


E assim, o Homem conheceu a noite. E a noite viveu por doze horas, e teve filhos e filhas.

Pétalas de Neve

Mais coisas weird.
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Pétalas de neve


Neve em Barbacena? Mas não!

Neve era coisa das Europa, coisa que só aquele povo estudado já viu. Mas que parece neve, parece. Assim branquinha. Assim levinha.

Uma nevinha borboletou de manso e foi chegando. Ele não quis, mas ela pousou assim mesmo. Daí que ele viu que não era gelada, era macia. Era a pétala de uma flor branca.

Ele sorriu. Mas estava tão cansado, tanto! Tinha muitas repostas e poucas perguntas, e isso cansava taaaanto. “Penso, logo existo”, de repente, pareceu uma afirmação das mais questionáveis. Até pra existir, ele estava cansado. Como se apiedado dele, o chão tremia de leve, ninando-o, e um pássaro cantou suave, ao longe.

Quanto mais ele entregava os ossos cansados à terra, mais sentia o tremor massagear suas juntas cansadas e mais ouvia o pássaro. Em pouco tempo eram só o tremor e o pássaro, o tremor e o pássaro, o tremor e o pássaro, o tremor e o pássaro...

...Que na verdade, eram um trem.

O trem o atingiu e o jogou da linha.

Pronto, era o fim.



...Mas não, não era. Caído de mau jeito como estava, ele viu o trem passar. Todas as janelas tinham fantasmas com roupas bufantes multicores, rindo frouxamente e apontando para ele. Na última janela do último vagão, uma jovem de vestido rodado dava tchau com um lenço. Oh, Deus, era Dalva.

Ele fechou os olhos. O impacto com o trem não doera. A visão da moça, sim. O trem de doido seguiu célere para Barbacena, com seus fantasmas e risadas. Um toque acariciou seu nariz, lembrando que continuava a chuva de flópalas de flores. Ou seriam póculos de neve? Qualquer coisa assim, não importava. Importante mesmo era aquela dor. Dor de Estela.

Conhecera-a por acaso. Todos os dias, ele ia trabalhar passando por um cenário em branco. Tudo bem, não era um cenário branco. Mas tinha o mesmo efeito de um. Ela ia pra não sei onde, fazer não sei o quê. Todos os dias. Quando ela passava, o mundo explodia de sons e cheiros e casas e pessoas. Virava um mundo real. Quando ela ia, tudo se apagava de novo.

Mas a Gabriela era rica e ele, pobre. Não podia oferecê-la nada que ela não tivesse. E não foi por falta de tentar.

Ele tentou ir pra encruzilhada fazer pacto com o coisa-ruim-pé-de-bode. Mas não viu ninguém lá e desistiu. Só então ficou sabendo da velha parteira.

Ela era filha de bruxa – sussurravam – e sabia segredos. Quando foi visitá-la, ela lhe deu um saquinho de pano de pendurar no pescoço e disse, serena e assustadora:

“Cê é o minino que fica suspirando por aquela coisinha do vestido de frô? Aqui, ó, bota essa mandinga no pescoço por trêis dia que arresorve o pobrema. No fim do tercero dia, cê fica de corpo fechado. Usa isso pra impressioná a muié. Quando cês... fizere as coisa, sabe? As coisa da vida. Intão, quando cês fizere as coisa, seu corpo abre de vorta e cês fica junto pra sempre. É tiro e queda.”

E ele nunca mais viu a velha de novo. Seu eu jovem e apressado só ouvira o “cês fica junto pra sempre”. Botou o feitiço no pescoço, ficou de corpo fechado, virou o heroi da região. Parava touro na unha, entrava em casa pegando fogo pra salvar gente, enfrentava bandido de arma na mão. E a Gisele? Casou com J. Pinto Fernandes, mudou pra capital e não convidou ninguém.

Ele se jogou na água, mas não se afogou. Se jogou no fogo, mas não se queimou. Ele tinha o corpo fechado, ainda.

De tanto procurou a morte que ele a achou. Ela gostou dele e passou a segui-lo como um cão fiel. E, como todo cão fiel, fazia pirraça quando o dono não dava atenção. Só de birra, a morte levava todo mundo em volta dele. Todo mundo. Todo mundo. Todo, todo, todo mundo. Como um cão carente de a-ten...ção...

Espera! Espera, espera, espera!

O que Ceifador, o velho mastim, tinha que ver com Milena? Droga, como as coisas estavam embaralhadas. O que ele se lembrava tinha acontecido com ele, ou foi alguma coisa que ele viu falar? Nossa! Como estava cansado!

Levantou-se. Loucura. Era isso. A palavra reverberava em todos os cantos de sua cabeça oca. Nada daquilo tinha acontecido. Moça-diabo-bruxa-corpo-morte. Nada estava no lugar, nada!

Se ele estava louco – e que alívio não lhe dava admitir aquilo! – devia partir o quanto antes. Não importava pra onde iria. Estava louco, todos os caminhos que seguisse levariam a Barbacena. Estava longe ou perto a cidade? Boa pergunta, aquela. Por via das dúvidas, ele decidiu correr. Não queria perder o trem das onze.

A noite estava densa com o perfume de flores molhadas de sereno. O perfume lembrava Maria. Não, era Sofia! Não!... Ah, maldição, ele estava confundindo tudo, tudo!

Era como as flórulas de febre e os pecados de noivos.

Ou qualquer coisa nesse gênero.