Eu tenho vários alunos no meu facebook e, nessas eleições, decidi que mal iria postar coisas lá para não ser acusada de fazer panfletagem com eles. No Twitter, relaxei um pouco zoando com o Aécio porque Aécio (e seu sucessor, Anastasia) tem uma longa e desgastante história com os professores de Minas e foi catártico ver pessoas de outros Estados de repente estarem falando sobre o homem que quase não é mencionado na amordaçada imprensa mineira.
Problemas pessoais com o candidato à parte, para mim, a questão sempre foi muito simples: mesmo que fosse outro do PSDB lá em cima, eu não votaria. A razão é: por mais que o PT tenha tido uma gestão deficiente em muitos sentidos (só vou deixar duas palavras cheias de mal agouro: crise imobiliária), dos partidos que entraram no pleito no segundo turno, é o mais próximo da minha ideologia. Eu não acho que o crescimento econômico vai gerar o bem-estar social, eu acho que cuidar do bem-estar social é que traz benefícios para a economia. (Até porque, economia é necessária e importante, já que o Governo precisa de dindim pra trabalhar.) No PSDB (o partido, não os eleitores), eu sinto enrustida aquela retórica de que "qualquer um pode ser rico, é só trabalhar - se você é pobre, ou é burro ou é preguiçoso", retórica que ganhou o nome novo e bonitinho de "meritocracia", e que não concordo.
Primeiro, por uma razão muito simples. Eu trabalho na assistência social espírita desde que me entendo por gente. Comecei a participar dos trabalhos em meados de 2004 e estou aqui até então, mas meu primeiro contato PRA VALER com o trabalho social foi em 2000. Pode-se dizer que estou nessa lida desde o início do Governo Lula. Os atingidos por esse trabalho são moradores de favelas e/ou regiões bem pobres.
Pois bem. Quando entrei pra assistência social, eram umas 20 a 30 famílias que se cadastravam pra receber cesta básica a cada semestre. Quando se conversava sobre política, essas pessoas repetiam palavra por palavra discursos de seus patrões ou de repórteres da TV. Minha avó vivia dizendo que "esse Lula não presta", Dra. Fulana disse pra lá, Dra. Fulana aconteceu pra cá. O Governo FHC tinha mesmo um programa semelhante ao Bolsa Família. E eles distribuíam cesta básica. Quer maior esmola que cesta básica?
Não é à toa que a mídia conseguiu eleger o Collor. A postura que se tinha era a de que os moradores de regiões pobres e pouco desenvolvidas eram pobres coitados que tinham que esperar em posição passiva o que os esclarecidos tinham a dar a eles. Que as "pessoas inteligentes" sabiam o que era melhor para eles.
Daí veio o Governo Lula e as bolsas. Agora, ao invés de receber o peixe (isso é, ganhar cesta básica pronta), o povo aprendeu a pescar (isso é, ganhar um dinheirinho equivalente a uma cesta básica para a pessoa comprar aquilo que acha melhor). Ao invés de dar benefícios às pessoas necessitadas, sem confiar que elas seriam capazes de comprar o que precisavam, o Governo deu a elas um voto de confiança. Deu o dinheiro e deixou que elas o gerenciassem. E vejam se que coisa curiosa: hoje, 10 anos depois de eu entrar para a assistência social, apenas 3 ou 4 famílias se cadastram lá por semestre, mas elas estão ali claramente por outras razões que não só a cesta básica. Elas compram no bazar beneficente, ao invés de só receber as doações. A casa espírita que frequento passou de "situada no meio da favela" a "situada em uma rua de casas simples". Todas as casas da rua de lá agora têm carro e quase todas foram reformadas e pintadas nos últimos anos.
Mas sabe o que é mais legal? Primeiro, essas pessoas têm agora opinião própria. Sim, muitas ainda respeitam muito, a ponto de imitar, falas de pessoas que elas percebem como "mais instruídas". Mas uma parte importante dessas pessoas percebeu que ela não precisa só votar no interesse de seus patrões, ou de gente de outro Estado. Que as pessoas as tratam como se fossem parasitas preguiçosos só esperando o bolsa família pingar, quando, na verdade, eles trabalham como burros e só querem consumir como todos os outros para terem sua dignidade. E isso dói. Dilma não ganhou por dar dinheiro a essas pessoas, mas porque elas obviamente não querem votar ao lado de quem as trata como lixo sem saber como elas realmente são.
Esse pessoal passa mais tempo na escola por conta do bolsa-escola (ah, e a primeira geração a pegar bolsa-escola no ensino médio já tem filhos, eu conheço vários). Esse pessoal tem grana pra entrar na internet e se informar graças às bolsas que deixam sobrar um trocado. Essas famílias têm agora membros que entraram na faculdade graças ao ENEM e ao PROUNI e trazem aquela cultura universitária pra casa delas.
Os pobres são burros? São desinformados? NÃO! Desinformados somos nós que achamos isso! Nós que cultivamos uma imagem de "pobre" de 15 anos atrás! A população que vive em regiões mais pobres nunca foi tão bem informada!
(Inclusive, quem fica falando de "pobre burro que vota no PT por causa do bolsa-esmola" deveria saber que, passando na favela, ouvi gente que ganha bolsa-família falando que ia votar no PSDB. Durma com um barulho desse.)
Não acho que a vitória da Dilma foi uma vitória de uma população preguiçosa que quer garantir seus trocados sem esforço. Por tudo o que vi nos últimos dez anos, não pelo jornal, mas diante dos meus olhos, essa foi uma vitória da politização de quem era só espectador.
Veja os lugares onde a Dilma ganhou: o Nordeste (que antes era conhecido só por "seca e miséria", os "coitadinhos do Brasil"), o interior de Minas ("só caipira encostado, porque não vão logo pras cidades ter uma vida melhor?") e outros lugares que estavam sempre à margem da política, sempre confiando na "gente instruída", sempre alimentados com os restos do "Brasil desenvolvido". Quando o Lula entrou, ele fez mais do que simplesmente dar comida pra esse povo. Isso, quem fazia eram os governos anteriores. Ele mostrou pra esse pessoal que eles tinham voto. Eles tinha vez. Tinham importância e dignidade. E o mais importante: o voto deles pesa. Eles podem votar pra si e ganhar.
O verdadeiro gigante que acordou no Brasil foram os marginalizados políticos, pessoal. Um gigante que não vai se satisfazer mais com migalhas de nenhum partido. O PT ganhou essa eleição pela gratidão desse gigante, mas se não der atenção a ele e não souber articular os interesses dele e os outros que sempre estiveram aí, não vai ter fôlego pra continuar.
É engraçado, não é, que o bolsa-família sempre tenha sido criticado por "dar o peixe, mas não ensinar a pescar", quando a verdade é que a esmola de cesta básica antes que era dar o peixe. O bolsa-família foi dar a vara, e agora o povo tá pescando que é uma maravilha. Gente que antes dava bença pro sinhô dotô hoje olha nos olhos do médico e questiona o diagnóstico dele, porque a internet fala tal coisa. Essas pessoas não podem mais ser empurradas pra debaixo do tapete. Elas querem seu pedaço do bolo-Brasil, e isso vai, naturalmente, diminuir os pedaços de quem antes ganhava muito bolo.
Eu amo esse novo Brasil, mesmo que isso signifique que, em 2018, ganhe um presidente que eu não concorde. Esse é um Brasil que está saindo do cabresto. Pra mim, a única coisa que falta pra gente definitivamente entrar no rumo certo é moralizar essa imprensa que publica calúnia e difamação sob o véu de "liberdade de expressão". Porque não tem outro nome para muito do que a Veja tem publicado ao longo desses anos. A Globo pode ser velhaca, mas ela tem seus limites. Ela tem o mínimo de responsabilidade de não ser alarmista, nem incitar o ódio (mesmo que eu tenha uma birra pessoa de como ela nunca cobre manifestações e greves entrevistando os manifestantes, mas as pessoas que estão paradas no trânsito, dando sutilmente a entender que os manifestantes são um bando de gente à toa impedindo gente de bem de trabalhar por bobagem).
No mais, ainda tem muito o que fazer pelo Brasil, e, por mim, não precisa ser o PT que vai fazer. Mas o importante é que o governo do PT vai deixar um legado maravilhoso de empoderamento político de pessoas e já está passando da hora de a oposição reconhecer que o maior colégio eleitoral agora é o Brasil, não é mais o eixo Sul-Sudeste (particularmente São Paulo). Agora, qualquer grupo de pessoas de qualquer parte do país pode fazer parte dos 3 milhões que vão te eleger.
segunda-feira, 27 de outubro de 2014
Desinformados? Desinformados somos nós!
sexta-feira, 18 de julho de 2014
A arte de fazer gráficos
As eleições estão chegando, todo mundo falando de pesquisa pra cá, pesquisa pra lá, daí resolvi dividir minha vasta experiência em manipular gráficos pra ficarem bonitos em apresentações de slide sem precisar cometer fraude (ei, gráficos são menos ferramentas matemáticas e mais estratégias de marketing - quem diz que nunca embelezou um gráfico está mentindo).
Apesar de eu sempre ter manipulado os gráficos para deixá-los mais simétricos e agradar meu TOC, sei muito bem como essas técnicas podem ser usadas para o lado negro da Força. Fique esperto quando perceber essas técnicas pipocando por aí.
1. Manipulação por escala
Essa é a manipulação mais simples de se fazer e funciona por sermos criaturas altamente impressionáveis pela via visual. Vamos supor que você tenha feito uma pesquisa demonstrando o aumento das vendas de determinado produto de uma empresa ao longo de vários meses. É hora de mostrar os resultados. Na hora da reunião com o chefe que o contratou para esse serviço, você mostra esse gráfico:
Todo mundo fica feliz e te dá tapinhas nas costas. As vendas não param de crescer, e crescem bem rápido! Pouco tempo depois, você é demitido e vai trabalhar para a empresa concorrente. Daí, você apresenta sua pesquisa para eles:
É, o crescimento ainda existe, mas parece que eles andam meio estagnados... Depois de um bom começo, as vendas estão crescendo, mas a passo de lesma. O que é ótimo para a concorrência.
Os dois gráficos foram feitos com os mesmos dados, se ainda não deu para desconfiar. A única diferença é que a escala de cima é bem maior que a de baixo. Esse é um truque muito simples. Se você quer enfatizar um crescimento (ou uma queda), aumente bem a escala. Se quer fazer parecer com uma situação mais estável, diminua bem a escala. Outro exemplo:
Dessa vez, ao invés de simplesmente achatar um pouco a escala, eu modifiquei os valores iniciais e finais do eixo y. No gráfico à esquerda, os valores começam em 100 e vão até 150. No gráfico ao lado, vão de 0 a 300. Desnecessário dizer que são os mesmos dados. (A grade ajuda vocês a verem o que manipulei. Reparem como ela geralmente está ausente em gráficos gerados para o grande público.)
Esse tipo de manipulação, em épocas de eleição, são um jeito sutil de fazer o crescimento ou queda de um candidato parecer maior do que do outro. Você não precisa inventar dados, só escolher a escala correta. Fiquem sempre de olho quando estatísticas de candidatos forem apresentadas separadamente. O gráfico mais confiável nesses casos é os que mostram todos juntos na mesma escala, apesar de, nesse caso termos o problema de...
2. Manipulação por amostragem
Essa é uma manipulação de dados ainda mais maldosa, porque não pode ser verificada com uma rápida olhada no eixo y, como a manipulação acima. No mundo acadêmico, se você for pego fazendo isso, já era.
A questão é, você sempre pode conseguir qualquer resultado que quiser em uma pesquisa estatística se tomar os dados no lugar e momento corretos. É essa a razão por haverem tantos institutos de pesquisa rivais. Cada um tem um método de determinar quem será entrevistado e de que maneira, o que muda bastante os resultados finais.
Uma forma simples de manipular por amostragem é escolher o período de tempo que mais lhe convém (e, muitas vezes, aplicar a manipulação de escala acima). Exemplo simples:
Os dois gráficos partem dos mesmos dados, mas o da esquerda pega dois anos de história do produto em questão e o da direita, de cerca de um ano. Veja como contam histórias diferentes: um deles é a história de um produto extremamente bem-sucedido, que teve uma ligeira estabilização nas vendas, mas voltou a subir. O outro é a história de um produto que cresceu muito, muito rápido, e logo começou a despencar. Se você olhar bem, no gráfico da esquerda, esse trecho parece quase uma linha reta.
Também é prática comum fazer uma pesquisa de opinião logo depois de um escândalo da mídia, quando se quer que alguma empresa, político ou celebridade apareçam sob luzes ruins. Ao se fazer uma pesquisa, timing é essencial.
Outra forma de manipulação por amostragem é selecionar discretamente quem vai responder sua pesquisa estatística.
Para usar um exemplo político, pequemos a candidata *ahem* Vilma, que tem uma base de voto em camadas de renda mais baixa e na região Nordeste e o candidato *ahem* Latércio, cuja base são as camadas mais bem favorecidas da população e a região sudeste.
Se você for uma agência que tem $impatia$ por Vilma, basta você mandar um número igual de coletores de dados (os carinhas de prancheta te perguntando em quem você vai votar) para cada Estado do Brasil. A região Nordeste é a que tem mais Estados. Logo, haverá mais coletores lá. Acrescente a isso a providência de mandar os coletores fazerem a pesquisa em horário de pico e em regiões mais frequentadas pelas camadas de mais baixa renda e boooom. Vilma estará bem colocada.
Se suas $impatia$ estiverem com Latércio, sem problemas. A região Sudeste do Brasil é a mais populosa. Logo, você pode decidir mandar para cada Estado um número de coletores de dados proporcional à população do mesmo. Assim, haverá mais coletores no Sudeste. Coloque seus coletores em horários logo antes ou logo depois dos horários de pico e em regiões mais frequentadas pela classe mais abastada e abracadabra, Latércio dispara na pesquisa.
Notem que isso não é necessariamente fraude. É intelectualmente desonesto, mas não é como se os coletores estivessem mentindo. Os dados são aqueles mesmo. Não dá pra processar as empresas de estatística por falarem a verdade, apesar de você poder questionar seus métodos.
E não, você não tem acesso a esses métodos por nenhuma maneira simples quando se tratam das pesquisas mostradas nos jornais e na TV. Não vou citar nomes pra não induzir ninguém a nada, mas no site de um instituto de pesquisa, eles explicam parcialmente seu método e oferecem um local onde você pode refinar os dados de acordo com certas parcelas da população. Mas algumas coisas não estão exatamente demonstradas lá, como o horário e endereço de coleta (mostrei acima como podem mudar o público atingido) ou o formulário que apresentam ao público para coletar os dados.
Aliás, quanto ao formulário de coleta, esse é outro problema...
3. Manipulação por indução do entrevistado
Imagino que a maior parte de vocês devem pensar que pesquisa de intenção de voto é algo simples. O entrevistador pergunta em quem você quer votar, lista os candidatos e você diz qual é sua escolha.
Eeeeerr... Não é bem assim. A maioria dos centros de pesquisa entregam um formulário enorme para a pessoa preencher. Normalmente, é uma maneira de disfarçar um pouco a pergunta principal da pesquisa, de modo a "desarmar" o entrevistado e se obter uma resposta mais honesta.
Já deu para perceber o quanto isso pode dar errado, né?
Um exemplo simples de como se pode manipular um resultado usando um formulário?
"Sr. Fulano, o senhor avalia o governo Di... er... Vilma como Ruim, Regular, Bom ou Ótimo?"
"Hum, sei lá, bom."
Outro pesquisador:
"Sr. Fulano, em termos de corrupção, o senhor avalia as instituições governamentais como Ruim, Regular, Bom ou Ótimo?"
"Ruim, bem ruim!"
"Sr. Fulano, o senhor avalia o governo Vilma como Ruim, Regular, Bom ou Ótimo?"
"Não tem horrível, não?"
Ainda outro pesquisador:
"Sr. Fulano, o senhor avalia o aumento do salário mínimo nos últimos anos como Ruim, Regular, Bom ou Ótimo?"
"Ah, foi bom!"
"Sr. Fulano, o senhor avalia o governo Vilma como Ruim, Regular, Bom ou Ótimo?"
"Quer saber, ele foi ótimo"
Claro, a maioria dos formulários não é tão cru, mas digamos não é algo difícil de ser feito. Na verdade, é algo tão fácil de acontecer que pode acontecer por acidente. Acidente ou não, não deixa de ser uma maneira de distorcer a percepção do entrevistado para que o coletor consiga determinado resultado.
Quando você para pra pensar, falar que uma pesquisa de opinião - não importa por qual instituto - tem dois ou três pontos percentuais de margem de erro é quase uma afronta.
----------
Esses são os modos mais fáceis de manipulação de resultados, mas nem de longe são os únicos. Tem manipulações matemáticas que você pode usar para conseguir gerar um gráfico que, visualmente, passe sensações positivas ou negativas a quem vê (o resultado final não é muito diferente do caso 1, de manipulação de escala, então não acho que vale a pena aprofundarmos nisso), sendo que até o design do gráfico pode ser mal-intencionado (tem muitas discussões legais por aí a esse respeito, procure o amigo designer mais próximo).
O mais importante que eu queria passar é que dados estatísticos são passados para o público depois de uma série de escolhas feitas por quem recolheu esses dados, e essas pessoas podem ter ideologias que distorçam a percepção final que o público terá desses dados.
Encarem os gráficos coloridos que surgirão durante as eleições com ceticismo, galera. E não só durante as eleições. Todo dia tem gráfico novo no jornal, e a maioria deles não está ali simplesmente para informar vocês. Eles querem vender uma ideia. Olho vivo!
Apesar de eu sempre ter manipulado os gráficos para deixá-los mais simétricos e agradar meu TOC, sei muito bem como essas técnicas podem ser usadas para o lado negro da Força. Fique esperto quando perceber essas técnicas pipocando por aí.
1. Manipulação por escala
Essa é a manipulação mais simples de se fazer e funciona por sermos criaturas altamente impressionáveis pela via visual. Vamos supor que você tenha feito uma pesquisa demonstrando o aumento das vendas de determinado produto de uma empresa ao longo de vários meses. É hora de mostrar os resultados. Na hora da reunião com o chefe que o contratou para esse serviço, você mostra esse gráfico:
Todo mundo fica feliz e te dá tapinhas nas costas. As vendas não param de crescer, e crescem bem rápido! Pouco tempo depois, você é demitido e vai trabalhar para a empresa concorrente. Daí, você apresenta sua pesquisa para eles:
É, o crescimento ainda existe, mas parece que eles andam meio estagnados... Depois de um bom começo, as vendas estão crescendo, mas a passo de lesma. O que é ótimo para a concorrência.
Os dois gráficos foram feitos com os mesmos dados, se ainda não deu para desconfiar. A única diferença é que a escala de cima é bem maior que a de baixo. Esse é um truque muito simples. Se você quer enfatizar um crescimento (ou uma queda), aumente bem a escala. Se quer fazer parecer com uma situação mais estável, diminua bem a escala. Outro exemplo:
Dessa vez, ao invés de simplesmente achatar um pouco a escala, eu modifiquei os valores iniciais e finais do eixo y. No gráfico à esquerda, os valores começam em 100 e vão até 150. No gráfico ao lado, vão de 0 a 300. Desnecessário dizer que são os mesmos dados. (A grade ajuda vocês a verem o que manipulei. Reparem como ela geralmente está ausente em gráficos gerados para o grande público.)
Esse tipo de manipulação, em épocas de eleição, são um jeito sutil de fazer o crescimento ou queda de um candidato parecer maior do que do outro. Você não precisa inventar dados, só escolher a escala correta. Fiquem sempre de olho quando estatísticas de candidatos forem apresentadas separadamente. O gráfico mais confiável nesses casos é os que mostram todos juntos na mesma escala, apesar de, nesse caso termos o problema de...
2. Manipulação por amostragem
Essa é uma manipulação de dados ainda mais maldosa, porque não pode ser verificada com uma rápida olhada no eixo y, como a manipulação acima. No mundo acadêmico, se você for pego fazendo isso, já era.
A questão é, você sempre pode conseguir qualquer resultado que quiser em uma pesquisa estatística se tomar os dados no lugar e momento corretos. É essa a razão por haverem tantos institutos de pesquisa rivais. Cada um tem um método de determinar quem será entrevistado e de que maneira, o que muda bastante os resultados finais.
Uma forma simples de manipular por amostragem é escolher o período de tempo que mais lhe convém (e, muitas vezes, aplicar a manipulação de escala acima). Exemplo simples:
Os dois gráficos partem dos mesmos dados, mas o da esquerda pega dois anos de história do produto em questão e o da direita, de cerca de um ano. Veja como contam histórias diferentes: um deles é a história de um produto extremamente bem-sucedido, que teve uma ligeira estabilização nas vendas, mas voltou a subir. O outro é a história de um produto que cresceu muito, muito rápido, e logo começou a despencar. Se você olhar bem, no gráfico da esquerda, esse trecho parece quase uma linha reta.
Também é prática comum fazer uma pesquisa de opinião logo depois de um escândalo da mídia, quando se quer que alguma empresa, político ou celebridade apareçam sob luzes ruins. Ao se fazer uma pesquisa, timing é essencial.
Outra forma de manipulação por amostragem é selecionar discretamente quem vai responder sua pesquisa estatística.
Para usar um exemplo político, pequemos a candidata *ahem* Vilma, que tem uma base de voto em camadas de renda mais baixa e na região Nordeste e o candidato *ahem* Latércio, cuja base são as camadas mais bem favorecidas da população e a região sudeste.
Se você for uma agência que tem $impatia$ por Vilma, basta você mandar um número igual de coletores de dados (os carinhas de prancheta te perguntando em quem você vai votar) para cada Estado do Brasil. A região Nordeste é a que tem mais Estados. Logo, haverá mais coletores lá. Acrescente a isso a providência de mandar os coletores fazerem a pesquisa em horário de pico e em regiões mais frequentadas pelas camadas de mais baixa renda e boooom. Vilma estará bem colocada.
Se suas $impatia$ estiverem com Latércio, sem problemas. A região Sudeste do Brasil é a mais populosa. Logo, você pode decidir mandar para cada Estado um número de coletores de dados proporcional à população do mesmo. Assim, haverá mais coletores no Sudeste. Coloque seus coletores em horários logo antes ou logo depois dos horários de pico e em regiões mais frequentadas pela classe mais abastada e abracadabra, Latércio dispara na pesquisa.
Notem que isso não é necessariamente fraude. É intelectualmente desonesto, mas não é como se os coletores estivessem mentindo. Os dados são aqueles mesmo. Não dá pra processar as empresas de estatística por falarem a verdade, apesar de você poder questionar seus métodos.
E não, você não tem acesso a esses métodos por nenhuma maneira simples quando se tratam das pesquisas mostradas nos jornais e na TV. Não vou citar nomes pra não induzir ninguém a nada, mas no site de um instituto de pesquisa, eles explicam parcialmente seu método e oferecem um local onde você pode refinar os dados de acordo com certas parcelas da população. Mas algumas coisas não estão exatamente demonstradas lá, como o horário e endereço de coleta (mostrei acima como podem mudar o público atingido) ou o formulário que apresentam ao público para coletar os dados.
Aliás, quanto ao formulário de coleta, esse é outro problema...
3. Manipulação por indução do entrevistado
Imagino que a maior parte de vocês devem pensar que pesquisa de intenção de voto é algo simples. O entrevistador pergunta em quem você quer votar, lista os candidatos e você diz qual é sua escolha.
Eeeeerr... Não é bem assim. A maioria dos centros de pesquisa entregam um formulário enorme para a pessoa preencher. Normalmente, é uma maneira de disfarçar um pouco a pergunta principal da pesquisa, de modo a "desarmar" o entrevistado e se obter uma resposta mais honesta.
Já deu para perceber o quanto isso pode dar errado, né?
Um exemplo simples de como se pode manipular um resultado usando um formulário?
"Sr. Fulano, o senhor avalia o governo Di... er... Vilma como Ruim, Regular, Bom ou Ótimo?"
"Hum, sei lá, bom."
Outro pesquisador:
"Sr. Fulano, em termos de corrupção, o senhor avalia as instituições governamentais como Ruim, Regular, Bom ou Ótimo?"
"Ruim, bem ruim!"
"Sr. Fulano, o senhor avalia o governo Vilma como Ruim, Regular, Bom ou Ótimo?"
"Não tem horrível, não?"
Ainda outro pesquisador:
"Sr. Fulano, o senhor avalia o aumento do salário mínimo nos últimos anos como Ruim, Regular, Bom ou Ótimo?"
"Ah, foi bom!"
"Sr. Fulano, o senhor avalia o governo Vilma como Ruim, Regular, Bom ou Ótimo?"
"Quer saber, ele foi ótimo"
Claro, a maioria dos formulários não é tão cru, mas digamos não é algo difícil de ser feito. Na verdade, é algo tão fácil de acontecer que pode acontecer por acidente. Acidente ou não, não deixa de ser uma maneira de distorcer a percepção do entrevistado para que o coletor consiga determinado resultado.
Quando você para pra pensar, falar que uma pesquisa de opinião - não importa por qual instituto - tem dois ou três pontos percentuais de margem de erro é quase uma afronta.
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Esses são os modos mais fáceis de manipulação de resultados, mas nem de longe são os únicos. Tem manipulações matemáticas que você pode usar para conseguir gerar um gráfico que, visualmente, passe sensações positivas ou negativas a quem vê (o resultado final não é muito diferente do caso 1, de manipulação de escala, então não acho que vale a pena aprofundarmos nisso), sendo que até o design do gráfico pode ser mal-intencionado (tem muitas discussões legais por aí a esse respeito, procure o amigo designer mais próximo).
O mais importante que eu queria passar é que dados estatísticos são passados para o público depois de uma série de escolhas feitas por quem recolheu esses dados, e essas pessoas podem ter ideologias que distorçam a percepção final que o público terá desses dados.
Encarem os gráficos coloridos que surgirão durante as eleições com ceticismo, galera. E não só durante as eleições. Todo dia tem gráfico novo no jornal, e a maioria deles não está ali simplesmente para informar vocês. Eles querem vender uma ideia. Olho vivo!
sexta-feira, 6 de setembro de 2013
Sobre inveja e invejosos
Não é só nos últimos dias que ouço sobre inveja e invejosos, mas isso virou a polêmica do dia no círculo de escritores que eu acompanho e resolvi dar dois centavos sobre o assunto.
Inveja é um sentimento ruim? É. Ela mostra aquela arrogância latente dentro de cada um de nós? Ô. Mas você pode usá-la a seu favor, se essa inveja for um combustível para que você de fato persiga seu sonho e chegue ao sucesso que você tanto quer (de preferência, sem pisar em ninguém no caminho). Agora, inveja por inveja seguida de inércia é puro desgaste de energia.
Quando os defensores do casal Draccon chamaram os detratores de "maus escritores invejosos", eles fizeram uma generalização complexa. Sentir inveja não tem nada a ver com talento, é um sentimento humano: Leonardo da Vinci e Michelângelo, dois dos maiores gênios da Humanidade, sofriam de despeito crônico um pelo outro e falavam mal um do outro constantemente.
Não acredita? Extrato de uma carta de Michelângelo:
"Sobre aquele homem (Leonardo da Vinci) que escreveu dizendo que a pintura é mais nobre que a escultura, acho que minha empregada sabe mais do que ele."
Fonte: Clique Aqui
Dei uma chupinhada de uma revista Super online, mais por que esse incidente poderia ter acontecido ontem:
"O Michelangelo, 23 anos mais jovem que o rival, era irreverente, impetuoso e, não raro, malcriado. Sua intempestividade lhe rendeu brigas homéricas com os Médicis, a família florentina que patrocinava grande parte dos artistas da época. Discordava daqueles que viam em Leonardo um gênio. Mas, num cantinho qualquer do seu ateliê, Michelangelo se via na obrigação de estudar as experimentações de seu grande desafeto, por ele ter sido precursor de uma série de inovações técnicas – como o “claro/escuro”, o jogo de sombra e luz. “Michelangelo nutria por Leonardo um misto de inveja, discordância e admiração velada”, diz Maria Elisa de Oliveira Cezaretti, professora de História da Arte na Faculdade Belas Artes, de São Paulo.
O resto da matéria está aqui: http://super.abril.com.br/cultura/leonardo-vinci-michelangelo-eles-nao-se-bicavam-460383.shtml
Agora que leram isso, olhem nos meus olhos e digam que Michelângelo era um "mau artista invejoso, que só sabia falar mal do sucesso de Leonardo". Ou, olhando por outro ângulo, digam na minha cara que Leonardo era só um cara arrogante que conseguiu seu sucesso porque era baladeiro e tinha contatos.
Hoje, está bem claro que ambos eram gênios, e ainda assim, havia inveja e amargura entre eles. Para alguém da época, aposto que os amigos de Leonardo desprezavam Michelângelo como um artista menor invejoso e os amigos de Michelângelo desprezavam Leonardo como um riquinho arrogante superestimado.
Meu ponto aqui é: é muito fácil julgar o outro como alguém que tem menos merecimento que você e está com mera inveja. Isso faz você se sentir confortável e não te obriga a partilhar a dor do outro, nem admitir que talvez - vejam só! - o outro realmente esteja justificado em seu sentimento de injustiça. Talvez o outro realmente tenha mais talento que você e foi desfavorecido por azar ou por não ter certos privilégios. Isso dói. Ninguém gosta de ser o privilegiado, o opressor. Mas às vezes, nós somos. Dizer "sua inveja é meu sucesso" é tão arrogante quanto ser invejoso.
Por outro lado, também é cômodo para as pessoas pintarem aquele que foi bem-sucedido como arrogante, preguiçoso e alguém que só está onde está por conta de sorte e privilégios. Faz com que pareça que qualquer esforço que você faça, por menor que seja, já é mais do que a pessoa fez. Agora convenhamos: não importa o quão cheia de contatos e privilégios uma pessoa seja: algum trabalho ela fez pra alcançar seu sucesso. Quanto trabalho? Quanto sacrifício? Jamais saberemos, não estamos na pele dessa pessoa.
Trazendo isso para a cena dos escritores que aludi acima, pensem aqui comigo: escritores vêm em todas as camadas sociais. Imagine um escritor "invejoso" que é, digamos, um professor que trabalha em dois turnos (manhã e tarde) e faz uns bicos em cursinho à noite pra pagar as contas, que só escreve nas poucas horas vagas (e com isso, mal tem tempo pras redes sociais e pra "construir redes de contato"), que custa a terminar o livro (e quando termina, ainda passa bastante tempo aperfeiçoando) e faz um produto que pode não ser uma obra-prima, mas é melhor do que pelo menos 50% do que se vê por aí. Esse escritor tem que ouvir que "nunca vai ser publicado porque é um ninguém e sua vida é chata", ou que "uai, se quer publicar tanto, tenta uma editora paga". Sendo que editora paga vai cobrar quase tanto quanto um carro usado e o escritor ainda vai ter que abrir mão de um de seus empregos (e deixar sua família na mão) pra sair por aí se promovendo e talvez vender alguma coisa. Gente, ninguém que tenha família ou que se sustente sozinho larga um emprego certo que malemal paga as contas por um duvidoso-sabe-Deus-quando-vou-receber-algo. Se ninguém investir nessa pessoa, ela não vai se profissionalizar. Agora me digam: por mais invejoso que esse escritor seja, alguém pode reclamar quando ele fica indignado porque ouve de alguém que virou escritor com a bênção dos pais que "você é só um invejoso sem talento que não foi publicado por que não quis nem se esforçou o bastante?" Alguém cujos pais o ajudaram em seu sustento enquanto ele estava nas redes sociais e trabalhando no livro, que vem aparentemente de uma esfera social muito acima da sua? Desculpe aí, pessoal, mas se sentir invejado, ou qualificar todos que reclamam de sua postura como invejoso é se declarar privilegiado e tapar os ouvidos ao sofrimento do outro. É de uma insensibilidade muito grande. Sim, claro que há invejosos que realmente não tem nada publicado porque nem sequer terminaram o livro e ainda assim queriam já ser popstars. Mas colocar todos os "indignados" no mesmo balaio não dá.
Com isso, não estou defendendo a "indignação", o "falar mal". Pra mim, falar mal de alguém, ou desqualificar alguém de "invejoso", "arrogante" ou "incompetente" é mal-educado e insensível, não importa o contexto ou a pessoa. Não há desculpas para ser ofensivo. E aqueles que estão em posição de sucesso ou de poder são seres humanos como outros quaisquer. O simples fato de serem ricos, bem-sucedidos e tal não faz deles não-humanos que podem ser ofendidos do jeito que queremos. Eles têm tristezas, dificuldades e fazem sacrifícios tanto quanto qualquer um. O sonho da vida de uma patricinha não é menos sonho do que o de uma pessoa pobre. Algumas vezes, elas fazem sacrifícios enormes de botar sua cara a tapa ou de realmente se esforçar em algo que muitos de nós nem sonhamos. A gente só vê a faze sorridente que as pessoas mostram no facebook, nos blogs e tal, mas a realidade por trás do virtual pode ser muito mais feia do que imaginamos. Tristeza numa mansão ainda é tristeza e os ricos com quem já conversei todos me disseram: não, uma TV de plasma não sufoca sua tristeza mais do que uma TV preto-e-branco. Ter dinheiro pra ir pra Europa e realmente ir pra lá rende boas fotos, mas dificilmente cura uma depressão ou uma baixa autoestima (vide Leonardo ali em cima). Sendo assim, já tem um tempo que não importa o quão arrogantes, falsos e aparentemente incompetentes as celebridades pareçam: tento me abster de qualquer julgamento e qualquer comentário ácido porque não dá pra saber. Não quero ser uma daquelas pessoas que bateu um dos pregos do caixão de alguém que só era feliz e bem-sucedido na aparência, mas cuja autoestima era tão baixa que um mero comentário mal-educado faz a pessoa se desgovernar.
Enfim. O que falta nessas discussões de invejosos/invejados é simples empatia humana. Não são fotografias que estão ali fazendo ou recebendo comentários. São pessoas. Um universo largo de gente diferente e com suas próprias alegrias e tristezas. Criticar um livro, dizer que tal trabalho, tal obra de arte, tem esse ou aquele defeito, é uma coisa. Usar essa crítica como arma para ofender o outro é indesculpável. Se o outro é alguém que você tem certeza de que ele é uma má pessoa, alguém baixo e vil, me responda: que mérito há em chutar quem já está caído? Em cuspir em quem está no fundo do poço? Se você não se sente com forças pra ajudar a pessoa a se reerguer, passe adiante e chame a ambulância sem agravar o sofrimento dela. Simples assim.
Para quem não acompanha a polêmica, há poucos dias, o escritor Raphael Draccon deu uma entrevista onde ele diz a famosa frase de que o escritor Rubem Fonseca não seria publicado hoje por não ter contatos ou "uma vida tão interessante quanto aquilo que escreve". Ele também causou polêmica ao dizer que "escritor que fala mal de escritor não entra na minha editora". Pouco depois, foi anunciado um reality show entre ele e sua esposa, Carolina Munhoz (que também é escritora).
A internet então explodiu de pessoas descascando o Draccon (e, até certo ponto, sua esposa), dizendo que os livros do casal são ruins e etc e tal, e ele e seus amigos se defenderam dizendo que as pessoas que falam mal dele têm inveja de seu sucesso.
Olha, não há vítimas nem carrascos nessa história toda. A entrevista do escritor pode ter sido o que for, mas o selo editorial é dele. O dinheiro, se não é dele, foi confiado a ele. Ele tem, então, o direito de escolher quaisquer critérios que queira para escolher quem publicar. Se isso vai dar dinheiro a ele ou não, o problema é de quem? Não é o sagrado dever de uma editora preservar a qualidade da literatura nacional. Editoras precisam fazer dinheiro pra se manterem. Se queremos lutar para bons livros serem publicados, mesmo que não se paguem, é hora de nós leitores e escritores nos unirmos para acharmos uma solução que não envolva dizer a uma instituição particular como gastar seu suado dinheirinho.
Por outro lado, Draccon e senhora não são gênios incompreendidos por uma turba de invejosos. Li a premissa e o primeiro capítulo do livro de ambos e nenhum me pegou, sendo que o primeiro livro de Munhoz (O Inverno das Fadas) tem uma qualidade técnica ruim. Não estou julgando no quesito entretenimento (só li o primeiro capítulo), mas na parte instrumental da escrita: uso de metáforas e frases de efeito, construção e alívio de tensão, ritmo de leitura, essas coisas. Ser tecnicamente ruim significa que o livro tem valor puramente de entretenimento, e isso significa que ele se vende somente para o nicho que goste apaixonadamente do tema de que ele trata (fadas, romance e um pouco de erotismo, no nosso caso) ou para leitores que ainda não tenham alguma tarimba. Isso não é um total demérito ao escritor, mas não faz dele um gênio da literatura. Na defesa de Munhoz, dizem que seu segundo livro, Feérica, é melhor que o primeiro. Não cheguei a ler, mas acredito sim, que ela tenha melhorado - é impressionante o que um simples ano de maturação faz com sua escrita, falo por experiência própria.
Isso dito, vamos falar de inveja. Basicamente, ter inveja é ver o sucesso de outra pessoa e acreditar que você tem mais mérito do que ela para obter esse sucesso. Que se houvesse justiça no mundo, era você que deveria estar no alto do pódio, já que você é melhor do que quem está lá. Se alguém me disser que nunca sentiu inveja na vida, ou essa pessoa me mostra a auréola dela, ou nada feito.
Inveja é um sentimento ruim? É. Ela mostra aquela arrogância latente dentro de cada um de nós? Ô. Mas você pode usá-la a seu favor, se essa inveja for um combustível para que você de fato persiga seu sonho e chegue ao sucesso que você tanto quer (de preferência, sem pisar em ninguém no caminho). Agora, inveja por inveja seguida de inércia é puro desgaste de energia.
Quando os defensores do casal Draccon chamaram os detratores de "maus escritores invejosos", eles fizeram uma generalização complexa. Sentir inveja não tem nada a ver com talento, é um sentimento humano: Leonardo da Vinci e Michelângelo, dois dos maiores gênios da Humanidade, sofriam de despeito crônico um pelo outro e falavam mal um do outro constantemente.
Não acredita? Extrato de uma carta de Michelângelo:
"Sobre aquele homem (Leonardo da Vinci) que escreveu dizendo que a pintura é mais nobre que a escultura, acho que minha empregada sabe mais do que ele."
Fonte: Clique Aqui
Dei uma chupinhada de uma revista Super online, mais por que esse incidente poderia ter acontecido ontem:
"O Michelangelo, 23 anos mais jovem que o rival, era irreverente, impetuoso e, não raro, malcriado. Sua intempestividade lhe rendeu brigas homéricas com os Médicis, a família florentina que patrocinava grande parte dos artistas da época. Discordava daqueles que viam em Leonardo um gênio. Mas, num cantinho qualquer do seu ateliê, Michelangelo se via na obrigação de estudar as experimentações de seu grande desafeto, por ele ter sido precursor de uma série de inovações técnicas – como o “claro/escuro”, o jogo de sombra e luz. “Michelangelo nutria por Leonardo um misto de inveja, discordância e admiração velada”, diz Maria Elisa de Oliveira Cezaretti, professora de História da Arte na Faculdade Belas Artes, de São Paulo.
Leonardo chamava a atenção, principalmente por sua excepcional beleza e seu porte físico. Estava acostumado a usar túnicas coloridas, em geral cor-de-rosa, que iam até os joelhos – um pouco curtas para os padrões da época, é verdade, mas sempre na moda. Deixava que a longa e encaracolada barba chegasse à metade do peito. E era festeiro: baladas eram com ele mesmo. “Leonardo participava de festas na corte, gostava de música, era bastante animado”, diz o artista plástico Percival Tirapeli, professor da Unesp. Foi graças a esse jeito que tinha para lidar com as pessoas, aliado a seu enorme talento, que ele conseguiu driblar a má-sorte de ter sido filho bastardo naquela época. (Na Itália renascentista, quem carregava tal rótulo era rechaçado pela sociedade.)
(...)
Para Vasari [historiador contemporâneo de Da Vinci e Michelângelo], porém, a inimizade entre ambos deveu-se a um evento particular: o único encontro casual entre os dois nas ruas de Florença de que se tem notícia. Leonardo passeava com um amigo perto do Palazzo Spini, onde um grupo de homens discutia uma passagem do Inferno, de Dante Aligheri, obra em evidência na época. (Florença vivia um momento de glória: era, ao mesmo tempo, o lar de Michelangelo, Leonardo, Dante, Rafael, Botticelli e vários outros artistas.) À determinada altura, os homens pediram que Leonardo lhes explicasse alguns trechos do Inferno, bem na hora em que Michelangelo passava pelo local. Leonardo, sabendo da admiração do jovem artista por Dante, disse então: “Michelangelo vai explicar para vocês”. Pensando que estava sendo ridicularizado, Michelangelo enraiveceu e insultou Leonardo. Criticou a sua obra inacabada mais famosa, o monumental cavalo de bronze encomendado por Ludovico Sforza, duque de Milão: “Explique-se você, que fez um modelo de cavalo que jamais poderia terminar!” Atingido no calo, já em casa, Leonardo viveu um momento de grande baixa autoestima. Escreveu num de seus inúmeros cadernos de anotações: “Conte-me, conte-me se alguma vez eu fiz alguma coisa...”, considerando que talvez nada do que fizera na vida até então tivesse valido a pena."
O resto da matéria está aqui: http://super.abril.com.br/cultura/leonardo-vinci-michelangelo-eles-nao-se-bicavam-460383.shtml
Agora que leram isso, olhem nos meus olhos e digam que Michelângelo era um "mau artista invejoso, que só sabia falar mal do sucesso de Leonardo". Ou, olhando por outro ângulo, digam na minha cara que Leonardo era só um cara arrogante que conseguiu seu sucesso porque era baladeiro e tinha contatos.
Hoje, está bem claro que ambos eram gênios, e ainda assim, havia inveja e amargura entre eles. Para alguém da época, aposto que os amigos de Leonardo desprezavam Michelângelo como um artista menor invejoso e os amigos de Michelângelo desprezavam Leonardo como um riquinho arrogante superestimado.
Meu ponto aqui é: é muito fácil julgar o outro como alguém que tem menos merecimento que você e está com mera inveja. Isso faz você se sentir confortável e não te obriga a partilhar a dor do outro, nem admitir que talvez - vejam só! - o outro realmente esteja justificado em seu sentimento de injustiça. Talvez o outro realmente tenha mais talento que você e foi desfavorecido por azar ou por não ter certos privilégios. Isso dói. Ninguém gosta de ser o privilegiado, o opressor. Mas às vezes, nós somos. Dizer "sua inveja é meu sucesso" é tão arrogante quanto ser invejoso.
Por outro lado, também é cômodo para as pessoas pintarem aquele que foi bem-sucedido como arrogante, preguiçoso e alguém que só está onde está por conta de sorte e privilégios. Faz com que pareça que qualquer esforço que você faça, por menor que seja, já é mais do que a pessoa fez. Agora convenhamos: não importa o quão cheia de contatos e privilégios uma pessoa seja: algum trabalho ela fez pra alcançar seu sucesso. Quanto trabalho? Quanto sacrifício? Jamais saberemos, não estamos na pele dessa pessoa.
Trazendo isso para a cena dos escritores que aludi acima, pensem aqui comigo: escritores vêm em todas as camadas sociais. Imagine um escritor "invejoso" que é, digamos, um professor que trabalha em dois turnos (manhã e tarde) e faz uns bicos em cursinho à noite pra pagar as contas, que só escreve nas poucas horas vagas (e com isso, mal tem tempo pras redes sociais e pra "construir redes de contato"), que custa a terminar o livro (e quando termina, ainda passa bastante tempo aperfeiçoando) e faz um produto que pode não ser uma obra-prima, mas é melhor do que pelo menos 50% do que se vê por aí. Esse escritor tem que ouvir que "nunca vai ser publicado porque é um ninguém e sua vida é chata", ou que "uai, se quer publicar tanto, tenta uma editora paga". Sendo que editora paga vai cobrar quase tanto quanto um carro usado e o escritor ainda vai ter que abrir mão de um de seus empregos (e deixar sua família na mão) pra sair por aí se promovendo e talvez vender alguma coisa. Gente, ninguém que tenha família ou que se sustente sozinho larga um emprego certo que malemal paga as contas por um duvidoso-sabe-Deus-quando-vou-receber-algo. Se ninguém investir nessa pessoa, ela não vai se profissionalizar. Agora me digam: por mais invejoso que esse escritor seja, alguém pode reclamar quando ele fica indignado porque ouve de alguém que virou escritor com a bênção dos pais que "você é só um invejoso sem talento que não foi publicado por que não quis nem se esforçou o bastante?" Alguém cujos pais o ajudaram em seu sustento enquanto ele estava nas redes sociais e trabalhando no livro, que vem aparentemente de uma esfera social muito acima da sua? Desculpe aí, pessoal, mas se sentir invejado, ou qualificar todos que reclamam de sua postura como invejoso é se declarar privilegiado e tapar os ouvidos ao sofrimento do outro. É de uma insensibilidade muito grande. Sim, claro que há invejosos que realmente não tem nada publicado porque nem sequer terminaram o livro e ainda assim queriam já ser popstars. Mas colocar todos os "indignados" no mesmo balaio não dá.
Com isso, não estou defendendo a "indignação", o "falar mal". Pra mim, falar mal de alguém, ou desqualificar alguém de "invejoso", "arrogante" ou "incompetente" é mal-educado e insensível, não importa o contexto ou a pessoa. Não há desculpas para ser ofensivo. E aqueles que estão em posição de sucesso ou de poder são seres humanos como outros quaisquer. O simples fato de serem ricos, bem-sucedidos e tal não faz deles não-humanos que podem ser ofendidos do jeito que queremos. Eles têm tristezas, dificuldades e fazem sacrifícios tanto quanto qualquer um. O sonho da vida de uma patricinha não é menos sonho do que o de uma pessoa pobre. Algumas vezes, elas fazem sacrifícios enormes de botar sua cara a tapa ou de realmente se esforçar em algo que muitos de nós nem sonhamos. A gente só vê a faze sorridente que as pessoas mostram no facebook, nos blogs e tal, mas a realidade por trás do virtual pode ser muito mais feia do que imaginamos. Tristeza numa mansão ainda é tristeza e os ricos com quem já conversei todos me disseram: não, uma TV de plasma não sufoca sua tristeza mais do que uma TV preto-e-branco. Ter dinheiro pra ir pra Europa e realmente ir pra lá rende boas fotos, mas dificilmente cura uma depressão ou uma baixa autoestima (vide Leonardo ali em cima). Sendo assim, já tem um tempo que não importa o quão arrogantes, falsos e aparentemente incompetentes as celebridades pareçam: tento me abster de qualquer julgamento e qualquer comentário ácido porque não dá pra saber. Não quero ser uma daquelas pessoas que bateu um dos pregos do caixão de alguém que só era feliz e bem-sucedido na aparência, mas cuja autoestima era tão baixa que um mero comentário mal-educado faz a pessoa se desgovernar.
Enfim. O que falta nessas discussões de invejosos/invejados é simples empatia humana. Não são fotografias que estão ali fazendo ou recebendo comentários. São pessoas. Um universo largo de gente diferente e com suas próprias alegrias e tristezas. Criticar um livro, dizer que tal trabalho, tal obra de arte, tem esse ou aquele defeito, é uma coisa. Usar essa crítica como arma para ofender o outro é indesculpável. Se o outro é alguém que você tem certeza de que ele é uma má pessoa, alguém baixo e vil, me responda: que mérito há em chutar quem já está caído? Em cuspir em quem está no fundo do poço? Se você não se sente com forças pra ajudar a pessoa a se reerguer, passe adiante e chame a ambulância sem agravar o sofrimento dela. Simples assim.
segunda-feira, 26 de agosto de 2013
O preço de ser chefe
Ser faxineira é um emprego ingrato. Porque você é tratada como escrava, e porque as pessoas acham um absurdo o preço que você cobra pra fazer o serviço que elas não querem fazer. Algumas pessoas que destratam faxineiras usam da desculpa de que "estão pagando, querem o serviço direito". Justo. Vamos ver qual o preço de se ter essa postura? Qual o preço de se repreender uma faxineira sem peso na consciência?
O salário mínimo atual é de R$ 680,00. Isso quer dizer que, para uma jornada de trabalho típica de 40 horas, a pessoa receberá R$ 16,95 por hora. Lembremos que, além do salário, o trabalhador tem direito a vale-transporte. Em Belo Horizonte, um ônibus da BH-Trans tem passagem de R$ 2,65. É mais se você morar em outro município da região metropolitana, mas vou considerar apenas ônibus belorizontinos. Se você não seguir o exemplo do Estado de Minas e pagar vale-alimentação a seus funcionários, lembre-se de que um marmitex pequeno (a opção mais barata de almoço fora de casa em BH) é R$ 7,00. O depósito do FGTS para um trabalhador de carteira assinada que ganha salário mínimo é de 8% do valor do salário. Isso dá R$ 1,40 por hora trabalhada. Se você não assina a carteira de alguém, nada mais justo que dar o FGTS direto para a pessoa fazer o que bem entende com ele.
Para calcular, então, qual seria o preço justo a se pagar a uma empregada, só resta saber quantas horas ela trabalhará em sua casa. Uma faxina basicona, envolvendo varrer/aspirar o chão, tirar poeira, lavar a pia (e as vasilhas que inevitavelmente estarão lá), aguar as plantas, lavar banheiro e esfregar o chão da cozinha e da área, não se faz em menos de duas horas. Não mesmo, se você quiser um bom serviço. Adicione pelo menos meia hora para cada banheiro extra (uma hora se o box for de vidro e você o quiser brilhante), meia hora para cada pátio/garagem, pelo menos meia hora pra cada tarefa a mais que você quiser feita (lavar vidros, encerar os tacos, lavar caixa de gordura, etc) e meia hora pra cada semana que a casa ficou sem limpar.
Na verdade, a única maneira justa de saber quanto tempo leva uma faxina é fazer isso você mesmo e cronometrar. Cada casa é uma casa, algumas são menores e mais fáceis de limpar, outras são terríveis. Já morei em lugares onde contratávamos faxineiras, e vou adotar o tempo médio da faxina como três horas. É uma boa média pra uma faxina semanal (no último desses lugares que morei, a faxineira ficava quatro horas, mas a casa era grande). Usando os valores acima, o valor justo para a faxineira seria R$ 60,35. Isso se você não for pagar o almoço dela, o que você deveria fazer se a contratar para uma faxina que dure seis horas ou mais.
Parece muito? Ainda está saindo barato perto de todos os depósitos que você teria que fazer se ela tivesse carteira assinada. Ainda assim, muitas pessoas acham um absurdo que uma faxineira cobre mais do que 30 reais por faxina. Uma faxininha de duas horas ficaria em R$ 42,00 pelos valores acima.
Esse é o preço que você tem que pagar para começar a ter direitos de reclamar com sua empregada por um serviço malfeito. Qualquer valor abaixo disso, é um FAVOR que ela está fazendo, não emprego - emprego só é emprego se paga no mínimo o salário mínimo. E quando alguém faz um favor pra gente, não estamos exatamente em posição de ficar fazendo mil e uma exigências.
Ser chefe tem um preço. Nesse caso, o preço de ser chefe de uma pessoa (pra um serviço que não exige qualificação técnica ou superior) por 2 horas é, no mínimo, de R$ 42,00. Ou você paga, ou prepare-se pra fazer concessões àquele que está te fazendo a caridade de te atender por menos (assumindo que você não se aproveita da ignorância da pessoa, claro). É simples assim.
O salário mínimo atual é de R$ 680,00. Isso quer dizer que, para uma jornada de trabalho típica de 40 horas, a pessoa receberá R$ 16,95 por hora. Lembremos que, além do salário, o trabalhador tem direito a vale-transporte. Em Belo Horizonte, um ônibus da BH-Trans tem passagem de R$ 2,65. É mais se você morar em outro município da região metropolitana, mas vou considerar apenas ônibus belorizontinos. Se você não seguir o exemplo do Estado de Minas e pagar vale-alimentação a seus funcionários, lembre-se de que um marmitex pequeno (a opção mais barata de almoço fora de casa em BH) é R$ 7,00. O depósito do FGTS para um trabalhador de carteira assinada que ganha salário mínimo é de 8% do valor do salário. Isso dá R$ 1,40 por hora trabalhada. Se você não assina a carteira de alguém, nada mais justo que dar o FGTS direto para a pessoa fazer o que bem entende com ele.
Para calcular, então, qual seria o preço justo a se pagar a uma empregada, só resta saber quantas horas ela trabalhará em sua casa. Uma faxina basicona, envolvendo varrer/aspirar o chão, tirar poeira, lavar a pia (e as vasilhas que inevitavelmente estarão lá), aguar as plantas, lavar banheiro e esfregar o chão da cozinha e da área, não se faz em menos de duas horas. Não mesmo, se você quiser um bom serviço. Adicione pelo menos meia hora para cada banheiro extra (uma hora se o box for de vidro e você o quiser brilhante), meia hora para cada pátio/garagem, pelo menos meia hora pra cada tarefa a mais que você quiser feita (lavar vidros, encerar os tacos, lavar caixa de gordura, etc) e meia hora pra cada semana que a casa ficou sem limpar.
Na verdade, a única maneira justa de saber quanto tempo leva uma faxina é fazer isso você mesmo e cronometrar. Cada casa é uma casa, algumas são menores e mais fáceis de limpar, outras são terríveis. Já morei em lugares onde contratávamos faxineiras, e vou adotar o tempo médio da faxina como três horas. É uma boa média pra uma faxina semanal (no último desses lugares que morei, a faxineira ficava quatro horas, mas a casa era grande). Usando os valores acima, o valor justo para a faxineira seria R$ 60,35. Isso se você não for pagar o almoço dela, o que você deveria fazer se a contratar para uma faxina que dure seis horas ou mais.
Parece muito? Ainda está saindo barato perto de todos os depósitos que você teria que fazer se ela tivesse carteira assinada. Ainda assim, muitas pessoas acham um absurdo que uma faxineira cobre mais do que 30 reais por faxina. Uma faxininha de duas horas ficaria em R$ 42,00 pelos valores acima.
Esse é o preço que você tem que pagar para começar a ter direitos de reclamar com sua empregada por um serviço malfeito. Qualquer valor abaixo disso, é um FAVOR que ela está fazendo, não emprego - emprego só é emprego se paga no mínimo o salário mínimo. E quando alguém faz um favor pra gente, não estamos exatamente em posição de ficar fazendo mil e uma exigências.
Ser chefe tem um preço. Nesse caso, o preço de ser chefe de uma pessoa (pra um serviço que não exige qualificação técnica ou superior) por 2 horas é, no mínimo, de R$ 42,00. Ou você paga, ou prepare-se pra fazer concessões àquele que está te fazendo a caridade de te atender por menos (assumindo que você não se aproveita da ignorância da pessoa, claro). É simples assim.
domingo, 25 de agosto de 2013
Minas Gerais
A mais recente coisa weird
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Minas Gerais
Lá, sobre os mares verdes de
Minas, onde as vagas imóveis se encontram com um céu tingido de arco-íris,
silencioso e invisível um pássaro paira.
Cá, na casa de lugar nenhum,
onde pardos pardais se amontoam nos beirais, com as mãos crispadas no peito e
uma capa de insondável negror, ansiosa e faminta ela aguarda.
E no meio do caminho, a
verde-amarela cobertura dos prados se dobra e sussurra “ele vem, ele vem”. As
cigarras fanfarram, intocadas que são pela sutileza. Na calmaria da
antecipação, um carro corta uma estrada, mas até a poeira por ele levantada cai
mais devagar.
Nos belos horizontes, eternos e
inalcançáveis, onde o rosa se espraia e as nuvens se acendem como lâmpadas de
neon, asas incomensuráveis ensaiam um farfalhar.
Ela sai da morada inexistente,
incapaz de ser detida, suave e inevitável como as horas que ventam em seus
cabelos, em busca do desejo que arde em seu coração.
Um mugido preguiçoso silencia todos os outros, os pássaros serenatam sobre o que era e já não é mais. As
folhas das árvores repicam sua música ancestral, que impensáveis éons não
lograram obliterar. E no marulho calmo dos rios, a luz busca seu último
santuário.
Subitamente ele exibe suas
plumas de imponderável azul, asas-braços bem abertos, na agonia triunfante que
é um desafio, mas é também um convite.
Ela avança, sem parar, sem
pensar, sem duvidar. Seu manto se espraia por distâncias incontáveis,
inescrutável e cravejado de lantejoulas que apenas timidamente se anunciam.
E os dois se abraçam com a
saudade de eras acumuladas, com a ânsia de amantes que têm apenas uma última
chance de dizer adeus. E bailam, o negro se espraiando pelo azul, o azul acendendo
os brilhantes do manto um a um.
Quando o pássaro exausto tomba e
apenas finas plumas ainda borboleteiam no ar, ela tomba com ele, finalmente
completa, finalmente saciada. Seu manto se desprende e permanece no ar,
testemunha e cúmplice, início e fim.
E assim, o Homem conheceu a
noite. E a noite viveu por doze horas, e teve filhos e filhas.
Pétalas de Neve
Mais coisas weird.
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Pétalas de neve
Neve em Barbacena? Mas não!
Neve era coisa das Europa, coisa que só aquele povo estudado já viu. Mas que parece neve, parece. Assim branquinha. Assim levinha.
Uma nevinha borboletou de manso e foi chegando. Ele não quis, mas ela pousou assim mesmo. Daí que ele viu que não era gelada, era macia. Era a pétala de uma flor branca.
Ele sorriu. Mas estava tão cansado, tanto! Tinha muitas repostas e poucas perguntas, e isso cansava taaaanto. “Penso, logo existo”, de repente, pareceu uma afirmação das mais questionáveis. Até pra existir, ele estava cansado. Como se apiedado dele, o chão tremia de leve, ninando-o, e um pássaro cantou suave, ao longe.
Quanto mais ele entregava os ossos cansados à terra, mais sentia o tremor massagear suas juntas cansadas e mais ouvia o pássaro. Em pouco tempo eram só o tremor e o pássaro, o tremor e o pássaro, o tremor e o pássaro, o tremor e o pássaro...
...Que na verdade, eram um trem.
O trem o atingiu e o jogou da linha.
Pronto, era o fim.
...Mas não, não era. Caído de mau jeito como estava, ele viu o trem passar. Todas as janelas tinham fantasmas com roupas bufantes multicores, rindo frouxamente e apontando para ele. Na última janela do último vagão, uma jovem de vestido rodado dava tchau com um lenço. Oh, Deus, era Dalva.
Ele fechou os olhos. O impacto com o trem não doera. A visão da moça, sim. O trem de doido seguiu célere para Barbacena, com seus fantasmas e risadas. Um toque acariciou seu nariz, lembrando que continuava a chuva de flópalas de flores. Ou seriam póculos de neve? Qualquer coisa assim, não importava. Importante mesmo era aquela dor. Dor de Estela.
Conhecera-a por acaso. Todos os dias, ele ia trabalhar passando por um cenário em branco. Tudo bem, não era um cenário branco. Mas tinha o mesmo efeito de um. Ela ia pra não sei onde, fazer não sei o quê. Todos os dias. Quando ela passava, o mundo explodia de sons e cheiros e casas e pessoas. Virava um mundo real. Quando ela ia, tudo se apagava de novo.
Mas a Gabriela era rica e ele, pobre. Não podia oferecê-la nada que ela não tivesse. E não foi por falta de tentar.
Ele tentou ir pra encruzilhada fazer pacto com o coisa-ruim-pé-de-bode. Mas não viu ninguém lá e desistiu. Só então ficou sabendo da velha parteira.
Ela era filha de bruxa – sussurravam – e sabia segredos. Quando foi visitá-la, ela lhe deu um saquinho de pano de pendurar no pescoço e disse, serena e assustadora:
“Cê é o minino que fica suspirando por aquela coisinha do vestido de frô? Aqui, ó, bota essa mandinga no pescoço por trêis dia que arresorve o pobrema. No fim do tercero dia, cê fica de corpo fechado. Usa isso pra impressioná a muié. Quando cês... fizere as coisa, sabe? As coisa da vida. Intão, quando cês fizere as coisa, seu corpo abre de vorta e cês fica junto pra sempre. É tiro e queda.”
E ele nunca mais viu a velha de novo. Seu eu jovem e apressado só ouvira o “cês fica junto pra sempre”. Botou o feitiço no pescoço, ficou de corpo fechado, virou o heroi da região. Parava touro na unha, entrava em casa pegando fogo pra salvar gente, enfrentava bandido de arma na mão. E a Gisele? Casou com J. Pinto Fernandes, mudou pra capital e não convidou ninguém.
Ele se jogou na água, mas não se afogou. Se jogou no fogo, mas não se queimou. Ele tinha o corpo fechado, ainda.
De tanto procurou a morte que ele a achou. Ela gostou dele e passou a segui-lo como um cão fiel. E, como todo cão fiel, fazia pirraça quando o dono não dava atenção. Só de birra, a morte levava todo mundo em volta dele. Todo mundo. Todo mundo. Todo, todo, todo mundo. Como um cão carente de a-ten...ção...
Espera! Espera, espera, espera!
O que Ceifador, o velho mastim, tinha que ver com Milena? Droga, como as coisas estavam embaralhadas. O que ele se lembrava tinha acontecido com ele, ou foi alguma coisa que ele viu falar? Nossa! Como estava cansado!
Levantou-se. Loucura. Era isso. A palavra reverberava em todos os cantos de sua cabeça oca. Nada daquilo tinha acontecido. Moça-diabo-bruxa-corpo-morte. Nada estava no lugar, nada!
Se ele estava louco – e que alívio não lhe dava admitir aquilo! – devia partir o quanto antes. Não importava pra onde iria. Estava louco, todos os caminhos que seguisse levariam a Barbacena. Estava longe ou perto a cidade? Boa pergunta, aquela. Por via das dúvidas, ele decidiu correr. Não queria perder o trem das onze.
A noite estava densa com o perfume de flores molhadas de sereno. O perfume lembrava Maria. Não, era Sofia! Não!... Ah, maldição, ele estava confundindo tudo, tudo!
Era como as flórulas de febre e os pecados de noivos.
Ou qualquer coisa nesse gênero.
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Pétalas de neve
Neve em Barbacena? Mas não!
Neve era coisa das Europa, coisa que só aquele povo estudado já viu. Mas que parece neve, parece. Assim branquinha. Assim levinha.
Uma nevinha borboletou de manso e foi chegando. Ele não quis, mas ela pousou assim mesmo. Daí que ele viu que não era gelada, era macia. Era a pétala de uma flor branca.
Ele sorriu. Mas estava tão cansado, tanto! Tinha muitas repostas e poucas perguntas, e isso cansava taaaanto. “Penso, logo existo”, de repente, pareceu uma afirmação das mais questionáveis. Até pra existir, ele estava cansado. Como se apiedado dele, o chão tremia de leve, ninando-o, e um pássaro cantou suave, ao longe.
Quanto mais ele entregava os ossos cansados à terra, mais sentia o tremor massagear suas juntas cansadas e mais ouvia o pássaro. Em pouco tempo eram só o tremor e o pássaro, o tremor e o pássaro, o tremor e o pássaro, o tremor e o pássaro...
...Que na verdade, eram um trem.
O trem o atingiu e o jogou da linha.
Pronto, era o fim.
...Mas não, não era. Caído de mau jeito como estava, ele viu o trem passar. Todas as janelas tinham fantasmas com roupas bufantes multicores, rindo frouxamente e apontando para ele. Na última janela do último vagão, uma jovem de vestido rodado dava tchau com um lenço. Oh, Deus, era Dalva.
Ele fechou os olhos. O impacto com o trem não doera. A visão da moça, sim. O trem de doido seguiu célere para Barbacena, com seus fantasmas e risadas. Um toque acariciou seu nariz, lembrando que continuava a chuva de flópalas de flores. Ou seriam póculos de neve? Qualquer coisa assim, não importava. Importante mesmo era aquela dor. Dor de Estela.
Conhecera-a por acaso. Todos os dias, ele ia trabalhar passando por um cenário em branco. Tudo bem, não era um cenário branco. Mas tinha o mesmo efeito de um. Ela ia pra não sei onde, fazer não sei o quê. Todos os dias. Quando ela passava, o mundo explodia de sons e cheiros e casas e pessoas. Virava um mundo real. Quando ela ia, tudo se apagava de novo.
Mas a Gabriela era rica e ele, pobre. Não podia oferecê-la nada que ela não tivesse. E não foi por falta de tentar.
Ele tentou ir pra encruzilhada fazer pacto com o coisa-ruim-pé-de-bode. Mas não viu ninguém lá e desistiu. Só então ficou sabendo da velha parteira.
Ela era filha de bruxa – sussurravam – e sabia segredos. Quando foi visitá-la, ela lhe deu um saquinho de pano de pendurar no pescoço e disse, serena e assustadora:
“Cê é o minino que fica suspirando por aquela coisinha do vestido de frô? Aqui, ó, bota essa mandinga no pescoço por trêis dia que arresorve o pobrema. No fim do tercero dia, cê fica de corpo fechado. Usa isso pra impressioná a muié. Quando cês... fizere as coisa, sabe? As coisa da vida. Intão, quando cês fizere as coisa, seu corpo abre de vorta e cês fica junto pra sempre. É tiro e queda.”
E ele nunca mais viu a velha de novo. Seu eu jovem e apressado só ouvira o “cês fica junto pra sempre”. Botou o feitiço no pescoço, ficou de corpo fechado, virou o heroi da região. Parava touro na unha, entrava em casa pegando fogo pra salvar gente, enfrentava bandido de arma na mão. E a Gisele? Casou com J. Pinto Fernandes, mudou pra capital e não convidou ninguém.
Ele se jogou na água, mas não se afogou. Se jogou no fogo, mas não se queimou. Ele tinha o corpo fechado, ainda.
De tanto procurou a morte que ele a achou. Ela gostou dele e passou a segui-lo como um cão fiel. E, como todo cão fiel, fazia pirraça quando o dono não dava atenção. Só de birra, a morte levava todo mundo em volta dele. Todo mundo. Todo mundo. Todo, todo, todo mundo. Como um cão carente de a-ten...ção...
Espera! Espera, espera, espera!
O que Ceifador, o velho mastim, tinha que ver com Milena? Droga, como as coisas estavam embaralhadas. O que ele se lembrava tinha acontecido com ele, ou foi alguma coisa que ele viu falar? Nossa! Como estava cansado!
Levantou-se. Loucura. Era isso. A palavra reverberava em todos os cantos de sua cabeça oca. Nada daquilo tinha acontecido. Moça-diabo-bruxa-corpo-morte. Nada estava no lugar, nada!
Se ele estava louco – e que alívio não lhe dava admitir aquilo! – devia partir o quanto antes. Não importava pra onde iria. Estava louco, todos os caminhos que seguisse levariam a Barbacena. Estava longe ou perto a cidade? Boa pergunta, aquela. Por via das dúvidas, ele decidiu correr. Não queria perder o trem das onze.
A noite estava densa com o perfume de flores molhadas de sereno. O perfume lembrava Maria. Não, era Sofia! Não!... Ah, maldição, ele estava confundindo tudo, tudo!
Era como as flórulas de febre e os pecados de noivos.
Ou qualquer coisa nesse gênero.
sexta-feira, 3 de junho de 2011
Sobre se fazer humor
Sobre a polêmica mais recente envolvendo o Marcelo Tas, não tenho muito o que dizer. Vou me sentar e aguardar os acontecimentos evitando julgamentos preconcebidos.
Cito isso porque me lembrou de algo que tem sido um problema para mim ultimamente: a falta de bons programas de humor no Brasil.
Não sei se estou ficando velha e rabugenta aos 23 anos, mas não consigo achar o menor pingo de graça na maior parte dos formatos humorísticos que temos. Nem no tão propalado CQC e sua forma particular de humor. Sei lá. Vejam se vocês me entendem:
Desde tempos imemoriais (na verdade, desde os meus 7 anos), meus pais se esforçaram para incutir na minha cabecinha noções de caridade, tolerância e respeito. Todo domingo, quando estudamos o Evangelho Segundo o Espiritismo, algum desses temas forçosamente entra na baila. E depois que comecei a conviver mais tempo na internet, não paro de aprender que respeitar alguém é uma coisa muito mais ampla e complexa do que parece, a princípio.
Respeitar alguém é não chamar uma pessoa por um nome que ela não gosta, é não ridicularizá-la por suas preferências particulares, é não humilhá-la publicamente apenas para obter umas risadas dos amigos em volta (e nem no particular, para seu deleite), é não se comportar com ela com base apenas em preconceitos e não em fatos...
Já repararam que pelo menos 90% das piadas e programas de humor atualmente sobrevivem exatamente de fazer as coisas que relacionei no parágrafo anterior?
Não consigo achar engraçadas as piadas homofóbicas, as piadas racistas, machistas e preconceituosas, no geral. Sei lá. Sabe o que é você ouvir algo e pensar que isso é tão grosseiro e carrega uma ignorância tão grande que nem é possível apreciar a ironia da piada? Pois é. Já falei sobre o politicamente incorreto antes, e o que ele quer dizer pra mim.
Estou aqui me lembrando daquele caso em que as autoridades brasileiras não gostaram do episódio dos Simpsons passado no Brasil. Na época, achei uma besteira tão grande essa reação. Afinal, o Casseta e Planeta tinha tiradas muito mais ácidas envolvendo nosso país, e ninguém aparecia pra crucificar. Mas agora, me dá o que pensar... De fato, não é a mesma coisa um estrangeiro fazer piada do Brasil e um brasileiro fazer o mesmo.
Tudo é uma questão de pressupostos. Veja, um brasileiro pode fazer a piada que for sobre o Brasil, que certa dose de respeito e carinho pelo país sempre existirão, ali permeados. Além disso, se alguém faz piada de algo em seu país, essa pessoa mostra que ela vê essa mazela, e não concorda com ela. Compare:
Sua mãe, brasileira, vira e fala: "O Brasil presta mais atenção no peito da mulher que no que ela tá falado."
Um francês vira e fala: "O Brasil presta mais atenção no peito da mulher que no que ela tá falado."
Percebem a diferença sutil? Quando um brasileiro aponta mazelas do Brasil, está implícito que ele não concorda com ela. Que existem brasileiros que só querem ver o peito da mulher, mas existem aqueles que desgostam isso. Quando um francês diz a mesma coisa, o que está implícito é que sua nacionalidade não compactua com a outra. Que todos os brasileiros são iguais e inferiores aos franceses nesse quesito. Daí a carga ofensiva de ser criticado por um outro externo.
Isso quer dizer que os franceses estão proibidos de criticar o Brasil? Não. É só que, sabendo que uma crítica direta e impensada como essa é ofensiva, ele tem que tomar cuidado para deixar bem claro o que quer dizer. O preço que pagamos por sermos críticos externos a um movimento é pensarmos no que estamos falando.
Voltando ao humor, isso se aplica a piadas também. Quer dizer, sou (ovolacto)vegetariana. E acho muitas piadas sobre o vegetarianismo muito engraçadas. Poooorém, quando elas vêm de alguém que come carne, a maioria delas soa extremamente grosseira. Porque a pessoa não faz a concessão de que está falando de um tipo específico de vegetariano, mas de todos eles. E não, NÃO ESTÁ IMPLÍCITO na fala de alguém que come carne que ela não está falando do vegetarianismo como um todo. Lembra do caso do francês? Mesma coisa.
Esse raciocínio pode ser aplicado a temas como feminismo, homossexualidade, obesidade, nanismo, e qualquer outro que você possa pensar. Geralmente, só quem está de dentro de um desses grupos acima sabe o que é ofensivo e o que não é, vindo de fora. Quem está de fora TEM QUE FAZER CONCESSÕES À BOA EDUCAÇÃO. Ou seja, não é deixar de criticar os vegans que são chatos e ficam pregando vegetarianismo à mesa. É fazer isso sempre deixando claro que você sabe que o vegetarianismo é um movimento amplo e complexo e os chatos são uma minoria barulhenta. Ah, você não conhece um vegetariano que não seja chato? Talvez ele simplesmente seja tão tranquilo que você vai descobrir quase que por acidente que ele não come carne.
Trocando em miúdos, gosto mesmo é do humor feito por quem sabe do que está zoando. Quer dizer, ninguém se mete a fazer piadas nerds de matemática se não souber matemática. Por que se deve fazer piadas sobre, sei lá, feminismo, se a pessoa só sabe de feminismo "o que ouviu de fulana, que ouviu na TV"?
Agora, se você já está se coçando para dizer que, pela minha lógica, eu estou PROIBINDO alguém que não seja negro a fazer piadas com negros, calmaê. O que estou dizendo é: somente as pessoas que conhecem a fundo a realidade dos negros, do que eles se orgulham em si mesmos e com o que se ofendem DEVERIAM fazer piadas com eles. Se alguém quer fazer piada por sua conta e risco, sem conhecê-los, a pessoa PERDE O DIREITO de subir nas tamancas e dizer que está sendo "censurada" se algum negro pedir uma retratação pelo cunho racista da piada. Simples assim. Lembrando a sabedoria do Seu Madruga: "Quem fala o que quer, ouve o que não quer". Fez piada sem saber se era ofensiva? Aguente as consequências como um adulto, não como um menininho que não pode ser contrariado.
E é isso.
Continuo no aguardo de um programa de humor no Brasil que não apele pro preconceito, grosseria e/ou apelação sexual. (E que passe em um horário assistível...)
PS: Pra mim, os melhores stand-ups, no geral, são aqueles em que o humorista conta casos usando a si próprio como personagem. Nada como zoar a si mesmo para obrigar alguém a manter o respeito a um grupo.
Cito isso porque me lembrou de algo que tem sido um problema para mim ultimamente: a falta de bons programas de humor no Brasil.
Não sei se estou ficando velha e rabugenta aos 23 anos, mas não consigo achar o menor pingo de graça na maior parte dos formatos humorísticos que temos. Nem no tão propalado CQC e sua forma particular de humor. Sei lá. Vejam se vocês me entendem:
Desde tempos imemoriais (na verdade, desde os meus 7 anos), meus pais se esforçaram para incutir na minha cabecinha noções de caridade, tolerância e respeito. Todo domingo, quando estudamos o Evangelho Segundo o Espiritismo, algum desses temas forçosamente entra na baila. E depois que comecei a conviver mais tempo na internet, não paro de aprender que respeitar alguém é uma coisa muito mais ampla e complexa do que parece, a princípio.
Respeitar alguém é não chamar uma pessoa por um nome que ela não gosta, é não ridicularizá-la por suas preferências particulares, é não humilhá-la publicamente apenas para obter umas risadas dos amigos em volta (e nem no particular, para seu deleite), é não se comportar com ela com base apenas em preconceitos e não em fatos...
Já repararam que pelo menos 90% das piadas e programas de humor atualmente sobrevivem exatamente de fazer as coisas que relacionei no parágrafo anterior?
Não consigo achar engraçadas as piadas homofóbicas, as piadas racistas, machistas e preconceituosas, no geral. Sei lá. Sabe o que é você ouvir algo e pensar que isso é tão grosseiro e carrega uma ignorância tão grande que nem é possível apreciar a ironia da piada? Pois é. Já falei sobre o politicamente incorreto antes, e o que ele quer dizer pra mim.
Estou aqui me lembrando daquele caso em que as autoridades brasileiras não gostaram do episódio dos Simpsons passado no Brasil. Na época, achei uma besteira tão grande essa reação. Afinal, o Casseta e Planeta tinha tiradas muito mais ácidas envolvendo nosso país, e ninguém aparecia pra crucificar. Mas agora, me dá o que pensar... De fato, não é a mesma coisa um estrangeiro fazer piada do Brasil e um brasileiro fazer o mesmo.
Tudo é uma questão de pressupostos. Veja, um brasileiro pode fazer a piada que for sobre o Brasil, que certa dose de respeito e carinho pelo país sempre existirão, ali permeados. Além disso, se alguém faz piada de algo em seu país, essa pessoa mostra que ela vê essa mazela, e não concorda com ela. Compare:
Sua mãe, brasileira, vira e fala: "O Brasil presta mais atenção no peito da mulher que no que ela tá falado."
Um francês vira e fala: "O Brasil presta mais atenção no peito da mulher que no que ela tá falado."
Percebem a diferença sutil? Quando um brasileiro aponta mazelas do Brasil, está implícito que ele não concorda com ela. Que existem brasileiros que só querem ver o peito da mulher, mas existem aqueles que desgostam isso. Quando um francês diz a mesma coisa, o que está implícito é que sua nacionalidade não compactua com a outra. Que todos os brasileiros são iguais e inferiores aos franceses nesse quesito. Daí a carga ofensiva de ser criticado por um outro externo.
Isso quer dizer que os franceses estão proibidos de criticar o Brasil? Não. É só que, sabendo que uma crítica direta e impensada como essa é ofensiva, ele tem que tomar cuidado para deixar bem claro o que quer dizer. O preço que pagamos por sermos críticos externos a um movimento é pensarmos no que estamos falando.
Voltando ao humor, isso se aplica a piadas também. Quer dizer, sou (ovolacto)vegetariana. E acho muitas piadas sobre o vegetarianismo muito engraçadas. Poooorém, quando elas vêm de alguém que come carne, a maioria delas soa extremamente grosseira. Porque a pessoa não faz a concessão de que está falando de um tipo específico de vegetariano, mas de todos eles. E não, NÃO ESTÁ IMPLÍCITO na fala de alguém que come carne que ela não está falando do vegetarianismo como um todo. Lembra do caso do francês? Mesma coisa.
Esse raciocínio pode ser aplicado a temas como feminismo, homossexualidade, obesidade, nanismo, e qualquer outro que você possa pensar. Geralmente, só quem está de dentro de um desses grupos acima sabe o que é ofensivo e o que não é, vindo de fora. Quem está de fora TEM QUE FAZER CONCESSÕES À BOA EDUCAÇÃO. Ou seja, não é deixar de criticar os vegans que são chatos e ficam pregando vegetarianismo à mesa. É fazer isso sempre deixando claro que você sabe que o vegetarianismo é um movimento amplo e complexo e os chatos são uma minoria barulhenta. Ah, você não conhece um vegetariano que não seja chato? Talvez ele simplesmente seja tão tranquilo que você vai descobrir quase que por acidente que ele não come carne.
Trocando em miúdos, gosto mesmo é do humor feito por quem sabe do que está zoando. Quer dizer, ninguém se mete a fazer piadas nerds de matemática se não souber matemática. Por que se deve fazer piadas sobre, sei lá, feminismo, se a pessoa só sabe de feminismo "o que ouviu de fulana, que ouviu na TV"?
Agora, se você já está se coçando para dizer que, pela minha lógica, eu estou PROIBINDO alguém que não seja negro a fazer piadas com negros, calmaê. O que estou dizendo é: somente as pessoas que conhecem a fundo a realidade dos negros, do que eles se orgulham em si mesmos e com o que se ofendem DEVERIAM fazer piadas com eles. Se alguém quer fazer piada por sua conta e risco, sem conhecê-los, a pessoa PERDE O DIREITO de subir nas tamancas e dizer que está sendo "censurada" se algum negro pedir uma retratação pelo cunho racista da piada. Simples assim. Lembrando a sabedoria do Seu Madruga: "Quem fala o que quer, ouve o que não quer". Fez piada sem saber se era ofensiva? Aguente as consequências como um adulto, não como um menininho que não pode ser contrariado.
E é isso.
Continuo no aguardo de um programa de humor no Brasil que não apele pro preconceito, grosseria e/ou apelação sexual. (E que passe em um horário assistível...)
PS: Pra mim, os melhores stand-ups, no geral, são aqueles em que o humorista conta casos usando a si próprio como personagem. Nada como zoar a si mesmo para obrigar alguém a manter o respeito a um grupo.
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